Professor de inglês, programador, garçom, físico nuclear e diplomata. Foi a trajetória profissional vivenciada pelo paraibano Ernesto Batista Mané Júnior (foto), que foi recentemente reconhecido como uma das 100 pessoas negras mais influentes do mundo, na área de política e governança.
Ernesto explica que a seleção do Most Influential People of African Descent (MIPAD) é realizada por um grupo de empresários, políticos e influenciadores negros de diversos países, em apoio à Década Internacional de Afrodescendentes 2015/2024, proclamada pela ONU como momento crucial para promover ações pelo reconhecimento, justiça e desenvolvimento para as populações negras do mundo.
“Este ano fui contemplado ao lado da deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG), o que aumenta ainda mais o valor desse reconhecimento. Compreendo hoje que faço parte de um processo histórico muito bem situado no tempo e no espaço. Sou filho de um imigrante africano que recebeu uma oportunidade de vir estudar no Brasil, no momento em que seu país estava atravessando um momento político muito delicado, no bojo de seu processo de independência”, relata.
Ele acrescenta que tendo vivido toda sua infância, adolescência e início da vida adulta no Brasil, foi evidentemente, alvo de discriminação racial em vários momentos da sua existência, o que pautou sua maneira de se relacionar com as pessoas, moldou seu caráter e despertou sua consciência racial. Segundo revela Ernesto Mané Júnior, após ele ter saído do Brasil, essa consciência ampliou-se ainda mais, uma vez que teve contato com pessoas de outros países e pôde contextualizar melhor os processos diaspóricos dos quais faz parte.
“Despertei para o fato de que carrego um legado construído a duras penas pelas gerações que antecederam a minha e que me possibilitou ter esse lugar de fala. Ter me tornado PhD em Física Nuclear e diplomata foram fatores que, sem dúvida, contribuíram para receber esse reconhecimento, por tratarse de uma premiação que valoriza a excelência entre as pessoas negras. Com efeito, ainda há poucos cientistas negros e poucos negros no Corpo Diplomático Brasileiro, o que é sintomático de séculos de exclusão sistemática das pessoas negras nos espaços percebidos como de destaque”, constata.
Ernesto afirma que tem tentado, dentro das suas condições, dar uma contribuição para o aprofundamento dos debates e para o refinamento dos mecanismos institucionais de implementação das políticas de ação afirmativa, as quais foram frutos de um doloroso consenso da sociedade brasileira que se havia consolidado, sobretudo, ao longo dos últimos 20 anos. “Em suma, acredito que o que mais contribuiu para esse reconhecimento foi minha tomada de consciência transformada em ações que têm visado ao combate da discriminação racial e buscado a promoção da igualdade racial”, complementa.
Recentemente, Ernesto publicou, na Revista da Associação dos Diplomatas Brasileiros, uma crônica sobre reconhecimento do Cais do Valongo como Patrimônio da Humanidade. No texto, ele revela que dos cerca de 10 milhões de africanos que foram forçadamente trazidos para as Américas, cerca de 4 milhões veio para o Brasil, tornando o país o maior receptador de africanos nas Américas. “Estima-se que entre 500 mil e 1 milhão de africanos chegaram ao país pelo Cais do Valongo”, afirma.
Na publicação, Ernesto ressalta que, ao reconhecer-se que nenhuma ação do presente poderá reparar o que foi feito com os povos africanos no contexto do holocausto negro, é preciso revirar o passado para, ao menos no nível simbólico, devolver a alegria roubada dos corpos dos milhões que morreram durante esse triste capítulo da história da humanidade. Em outro artigo, Ernesto Mané Júnior, num ensaio sobre capoeira e diplomacia, afirma que no universo cultural da capoeira, a conformidade é um fenômeno que está na superfície, enquanto a resistência é subjacente às aparências.
“A capoeira ensina que encontrar o equilíbrio – confiar desconfiando – é o objetivo de um jogo bem jogado. Nesse sentido, a capoeira é bem pragmática. Os capoeiristas são ilusionistas, artífices da arte da dissimulação. Como o jogo de capoeira reflete as armadilhas do cotidiano, dominar a falsidade se torna fundamental para lidar com o imponderável. Dessa forma, a malandragem passa então a ser vista como uma forma de equalizar assimetrias, para se conseguir, dinamicamente, criar ordem a partir do caos. Ela é essencialmente uma tecnologia para lidar com um mundo de incertezas”, analisa.
Estudo como prioridade
O paraibano Ernesto Batista Mané Júnior nasceu em 1983, em João Pessoa, e é filho de uma brasileira e um africano. Diplomata desde 2014, Ernesto é físico, PhD em Física Nuclear pela Universidade de Manchester, com pós-doutorado pelo Laboratório de Física Nuclear e de Partículas do Canadá.
Ernesto conta que antes de ingressar no Itamaraty, trabalhou como professor de inglês, programador, garçom e pesquisador. Em seguida, foi bolsista do Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco para Afrodescendentes e prestou o concurso apenas duas vezes, tendo sido aprovado em quarto lugar na sua turma. Atualmente, atua na Divisão de Desarmamento e Tecnologias Sensíveis, vinculada ao Departamento de Organismos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores.
Ernesto foi uma criança muito curiosa e demonstrou, desde cedo, interesse por matemática e ciências naturais. Aos sete anos, havia decidido que queria ser cientista quando crescesse. Teve, no Ensino Fundamental, excelentes professores, que o inspiraram e incentivaram a se aprofundar nos estudos. Foi no início da adolescência que ele despertou a paixão pela física. Aos 14 anos, ele teve contato com o cálculo diferencial e estava começando a buscar livros de física em nível universitário. Fez o Ensino Médio na Escola Técnica Federal, no bairro de Jaguaribe, em João Pessoa, e se especializou em programação de computadores.
“Apesar de minha inclinação natural para os números, tive a sorte de também ter recebido, ao longo de meus anos escolares, uma boa formação humanística. Na Escola Técnica, por exemplo, fui aluno do Prof. Dr. Evaldo Souza, que dava aulas de geografia e sociologia. Também tive aulas de filosofia, artes, ética e cidadania”, revela.
O diplomata reconhece que o papel da sua família foi fundamental e moldou as escolhas que fez no campo profissional. “Sou filho de pais separados, e meu pai, que já é falecido desde 2014, saiu de casa quando eu tinha 6-7 anos de idade. Após a separação dos meus pais, minha mãe assumiu a responsabilidade integral pela criação dos filhos (somos quatro, pelo lado materno – tenho dois meio-irmãos e uma irmã, e eu sou o mais novo). Recordo que minha mãe trabalhava o dia inteiro, de modo que, quando eu não estava na escola, passava o tempo com os amigos do bairro ou com os meus irmãos. Quando estava com meus irmãos, geralmente havia conflitos”, comenta.
Em relação ao desempenho acadêmico, Ernesto confessa que sempre gostou de estudar e que, por isso, adquiriu cedo autonomia nos estudos. “Essa parte dos estudos sempre foi meu forte e também fonte de ciúmes dos meus irmãos, que não apresentavam o mesmo grau de aptidão ou gosto para os estudos. Acrescento que alguns dos meus tios me apoiaram substancialmente em minha trajetória acadêmica, através de conversas, incentivos e empréstimos de livros. Minha mãe incentivava na medida em que era a provedora das condições materiais para que eu pudesse estudar e sempre aceitou as escolhas acadêmicas que eu fiz”, destaca.
Ele afirma que viveu em João Pessoa da pré-escola ao término da faculdade. Estudou em três escolas distintas: o extinto IPEP (pré-escola até a 4ª série), Central de Aulas (CA) (ginásio, 5ª a 8ª série) e o ETFPB/CEFET-PB (Ensino Médio e Técnico). Fez sua faculdade de Física no Campus I da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). “Minha família viveu em vários bairros: Expedicionários, Torre, 13 de Maio, Bairro dos Estados e Pedro Gondim. Minha infância foi bastante normal: envolvia a escola e passar o tempo com os amigos do bairro, brincando na rua de bola de gude, ioiô, pega-pega, esconde-esconde, futebol. Subia em árvores e pulava o muro dos vizinhos para pegar frutas. Criei muitos bichos (cachorros, coelhos, tartarugas, papagaio e peixes). Na adolescência, joguei videogames e RPG, andei de bicicleta e de patins. Ia à praia e aproveitava a bela orla da cidade”, detalha.
O físico nuclear e diplomata observa que sempre foi muito responsável com os estudos. “Amante dos livros, depois de ter lido todos que havia em casa, passei a frequentar a biblioteca do Espaço Cultural com alguma assiduidade. Lá era meu refúgio, onde costumava passar horas nos finais de semana. Nos espaços em que convivi, fiz muitas amizades, algumas das quais perduram até os dias de hoje. Sinto bastante saudades dos amigos que deixei em João Pessoa”, admite.
Excelência levou paraibano a fazer PHD sem ter mestrado
Já na Universidade Federal da Paraíba, onde fez o bacharelado em Física, Ernesto foi bolsista do Programa Especial de Treinamento (PET), sob a tutoria do Prof. Dr. Pedro Christiano. “No PET, para além das matérias básicas, discutíamos o impacto da ciência na sociedade e o papel político do cientista. Éramos instigados a ler e discutir, em grupo, obras clássicas. Também iniciei um projeto de iniciação científica voluntária em física nuclear com o Prof. Dr. Nilton Teruya”, acrescenta.
Paralelamente a tudo isso, Ernesto descobre cedo que tinha forte inclinação para línguas estrangeiras. “Aos 11 anos, por exemplo, pedi a minha mãe para me matricular em um curso de inglês, onde, mais tarde, também tive aulas de espanhol, de modo que, no final da adolescência, falava bem as duas línguas. Aos 15 anos comecei a estudar alemão sozinho. Aos 20 anos, fiz parte de um programa de intercâmbio acadêmico em Manchester, no Reino Unido, entre setembro de 2003 e julho de 2004. Durante o intercâmbio, tive a oportunidade de aperfeiçoar o inglês e aprofundar minha formação em física”, afirma.
Ao final do intercâmbio, com base em seu desempenho acadêmico, considerado excelente (firstclass, no sistema inglês), Ernesto recebeu o convite do Prof. Jonathan Billowes, líder do grupo de física nuclear da Universidade de Manchester, o berço da física nuclear, para fazer o PhD direto, sem mestrado, sob sua supervisão. O trabalho de pesquisa deveria realizar-se no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares – o CERN, localizado em Genebra. “Aceitei com entusiasmo o convite, porém, antes, precisava voltar para o Brasil, aproveitar os créditos do intercâmbio, fazer algumas disciplinas que faltavam para receber o diploma de bacharel em Física”, conta.
Imediatamente após retornar do intercâmbio, Ernesto inicia um curso de francês na Aliança Francesa de João Pessoa, considerando que o idioma iria fazer parte de sua pesquisa de doutoramento em Genebra. Ele morou em Genebra, entre 2005 e 2009, quando defendeu a tese de doutorado. “O período em que realizei minha pesquisa de campo no CERN foi enriquecedor, pois estava em contato direto com as mentes mais brilhantes da comunidade científica internacional, além de ter conhecido muitas pessoas que trabalhavam nos inúmeros organismos multilaterais sediados na cidade”, declara.
Em agosto de 2009, Ernesto recebe oferta para realizar o pós-doutorado no Laboratório Nacional do Canadá de Física Nuclear e de Partículas (TRIUMF), localizado em Vancouver. “O laboratório possuía interesse no trabalho realizado no CERN e gostaria de trazer os avanços que eu havia ajudado a desenvolver na área de aprisionamento e resfriamento de íons radioativos e técnicas de espectroscopia laser de alta resolução. O pós-doutorado durou três anos (2009 a 2012), tendo sido exitoso nesse aspecto. Nesse período, também me dediquei à espectrometria de massa de precisão e à ressonância magnética nuclear, sendo autor e coator de uma série de publicações em jornais especializados”, completa.
Um ponto levantado pelo pesquisador Ernesto Mané tem a ver com a necessidade de investimento em mais centros de pesquisa. Ele acredita que o Brasil deveria investir mais em projetos nessa área, principalmente na medicina nuclear e na produção de radiofármacos. Ele justifica a opção de escolher a carreira diplomática ao fato de poder apreciar da liberdade intelectual que o permitisse direcionar sua curiosidade ao que lhe interessasse.
“Paradoxalmente, durante o doutorado e o pós-doutorado, não consegui realizar essa vontade em sua plenitude. Além disso, depois de ter dedicado alguns anos à pesquisa, descobri que a ciência é uma atividade política em todos os sentidos. Por exemplo, depois do doutorado e do pós-doutorado, o indivíduo tem de lutar por sua estabilidade profissional, por financiamento, por alunos e para ter suas ideias aceitas na comunidade científica. Esperava que, como diplomata, eu pudesse desfrutar de mais liberdade intelectual para explorar áreas da ciência e de outros domínios do conhecimento, que estariam inacessíveis, em decorrência das estruturas rígidas das universidades e dos centros de pesquisa, daí a opção pela diplomacia”, explica.
Entretanto, mesmo abraçando a carreira de diplomata, Ernesto Mané Júnior não esquece sua vocação pela física nuclear e, como sempre, muito dedicado aos estudos, ele parte, a partir de maio, para os Estados Unidos, de licença do Itamaraty, a fim de realizar seu segundo pós-doutorado, na Universidade de Princeton. O tema será ligado a salvaguardas do ciclo do combustível de submarinos movidos à propulsão nuclear. E verificação técnica do desmantelamento de ogivas para o desarmamento nuclear.
O diplomata
A preparação de Ernesto Mané Júnior para o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD) foi um enorme desafio, já que ele vinha de uma área de formação não tradicional entre os aprovados no concurso. Contudo, não ter tido contato prévio com as matérias, no nível de profundidade exigido pelo concurso, transformou Ernesto numa tábula rasa, e ele teve como absorver os conteúdos do edital de maneira bem direcionada.
“Fiquei aproximadamente dois anos estudando em período integral, entre abril de 2012 e maio de 2014, quando realizei as provas da última fase do concurso daquele ano. Os estudos seguiram o caminho usual dentro do paradigma de preparação que existe – uma combinação de cursos, seminários, aulas particulares, leituras, fichamentos e exercícios. Entre os desafios, um dos maiores foi o de conseguir compreender e assimilar os vetores que norteiam a atuação da diplomacia brasileira à luz, por exemplo, de considerações históricas, culturais e econômicas, além, claro, de ser capaz de manter o conteúdo factual fresco na memória, sem deixar escapar as principais informações”, relembra.
Atualmente, Ernesto está lotado na Divisão de Desarmamento e Tecnologias Sensíveis (DDS). “Tenho tido a oportunidade de contribuir com o tratamento, por exemplo, dos esforços multilaterais para a proibição do emprego de armas de destruição em massa – químicas, biológicas e nucleares – e a diminuição do sofrimento humano em situações de conflito armado. Entre as minhas responsabilidades diretas, posso listar o controle de exportação de bens sensíveis na área nuclear e de armas convencionais, o acompanhamento do bloco de convenções e arranjos multilaterais de armas convencionais, bem como a regulação das novas tecnologias de guerra à luz do direito internacional humanitário”, evidencia.
Em 2018, Ernesto fui selecionado para participar do prestigioso Programa de Desarmamento das Nações Unidas. Este programa existe há 40 anos e proporciona a 25 diplomatas escolhidos do mundo todo uma viagem ao mundo, durante 10 semanas, para aprender detalhes sobre toda as instituições que tratam do tema no âmbito das Nações Unidas. “É selecionado um diplomata por país, e eu fui o sétimo diplomata brasileiro a participar da última edição do programa (temos conseguido emplacar um dos diplomatas a cada 6-7 anos). Considero a participação nesse programa um dos pontos altos dos meus 5 anos no Itamaraty”, ressalta. As informações são do Jornal A União.
Texto: Alexandre Nunes