Mortes, torturas e desaparecimentos: um retrato da Ditadura Militar na Paraíba

Dilermano Mello do Nascimento, Severino Elias de Mello, Marcos Antônio da Silva Lima, José Maria Ferreira de Araújo, Ezequias Bezerra da Rocha, Umberto de Albuquerque Câmara Neto, Adauto Freire da Cruz, João Pedro Teixeira, Margarida Maria Alves, Pedro Inácio de Araújo (Pedro Fazendeiro) e João Alfredo Dias (Nego Fuba). Essa lista é composta por mortos ou desaparecidos políticos durante o período da Ditadura Militar na Paraíba.

As Ligas Camponesas, o estudante João Roberto Borges de Souza, o deputado estadual Assis Lemos, a ocupação da Faculdade de Direito, Elizabeth Teixeira, Guerrilha de Catolé do Rocha, Dom José Maria Pires, perseguição aos magistrados. Já esses são alguns nomes e acontecimentos marcantes da mesma época.

Ao passo que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) decreta “comemorações” alusivas ao Golpe Militar de 1964, e de informações difusas que circulam nas redes sociais e na “mídia alternativa” com intuito de distorcer a narrativa real do governo militar, o debate toma conta da sociedade.

A doutora em História e integrante do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Lúcia Guerra, comentou que a ação do presidente com relação ao regime militar já era esperado. “Alguém que elogia abertamente o Coronel Brilhante Ustra e que demonstrou diversas vezes sua compreensão sobre a ditadura militar: que não houve tortura, que foi um período de grande desenvolvimento no Brasil. Agora, felizmente, houve uma resistência e ele já refez um pouco essa indicação, mas sem dúvida vai haver expressões e comemorações. É um absurdo, é anticonstitucional”, afirmou Lúcia Guerra. “Esse dia será muito lembrado, não para exaltar, mas para ser um dia que não podemos esquecer. Não esquecer, para que não se repita”, completou.

Na Paraíba, assim como no Brasil, a Ditadura Militar deixou marcas históricas. Assassinatos, desaparecimentos, torturas, perseguições e prisões figuram entre os nefastos acontecimentos do período. No estado foi criada uma Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória (CEVPM), que contou com a participação da professora Lúcia Guerra. O grupo elaborou um relatório de mais de 740 páginas sobre a Ditadura Militar no estado. O documento, constituído em mais de quatro anos de trabalho, foi publicado em 2017. Nele constam depoimentos, reportagens, contextos históricos, imagens, relatos e informações.

Mortos, Família Teixeira e relação entre elite e Estado

A convite da reportagem do Paraíba Já, a professora Lúcia Guerra destacou pontos do relatório final da Comissão Estadual da Verdade. Confira:

Mortos e desaparecidos – “Alguns são reconhecidos pela União, outros não são reconhecidos, pois a União acha que faltam elementos para que se conclua que essas mortes tenham sido por agentes do Estado. Essa questão é relevante, porque a existência de milícias privadas se confundia com o braço armado do Estado. Pessoas morreram por essas milícias privadas, e o Estado não quer assumir, mas eram parceiros. Temos elencadas 14 pessoas, que para nosso relatório, eles foram mortos ou seu desaparecimento tem o braço do Estado, não foi só por milícia privada”.

Família Teixeira – “O assassinato de João Pedro Teixeira aconteceu antes do golpe, em 62, mas já nesse contexto de acirramento e enfrentamento das reivindicações populares, além da não aceitação da expansão de direitos. O assassinato dele, e toda perseguição em seguida que ocorre a formação da liderança de Elizabeth Teixeira. Ela viveu na clandestinidade, dentro do país, até a Lei da Anistia, o início da década de 80. Isso impactou a família, a dispersão de todos os filhos, um sofrimento real. Todos sofreram na pele os impactos e consequências da repressão sofrida por seus pais”.

Educação – “A intervenção que aconteceu na UFPB, o reitor Mário Porto foi destituído, foi posto um interventor. Isso foi um fato muito sério. A liberdade nas universidades, na educação, ficou muito claro o cerceamento. O interventor era um professor do curso de Medicina, mas também era um capitão médico, e ele fica [na reitoria] além do período estipulado”.

Relação entre a elite e o Estado repressor – “Isso está muito bem expresso na Granja do Terror, em Campina Grande. Era um espaço particular, e foi utilizada como local de repressão. Foi montado todo aparato para tortura. Vários campinenses foram levados para lá, para serem torturados. Isso mostra esse pacto da elite com o aparelho repressor do Estado”.

Militância feminina – “Muitas mulheres estavam envolvidas nessa resistência. Foram presas, torturadas. Eram estudantes secundaristas, universitárias, das mais diversas ocupações. Esse é um aspecto importante também, a identificação dessa militância feminina”.

Relatos

[Meu pai foi trabalhar] num roçado de abacaxi. Mas no retorno para casa foi assassinado juntamente com outros camponeses que participavam das ligas“. (Maria do Socorro Cardoso, filha do camponês Pedro Cardoso da Silva, um dos camponeses assassinados no conflito ocorrido em Mari).

Torturados nas Granjas do Terror em Campina Grande. Eles contaram que foram colocados em pau de arara, receberam choques elétricos, pesadas nos testículos e outros métodos cruéis“. (Relato da prisão política de José Bernardo e José Ailton, feito pelos próprios)

[…] quando meu pai saiu do quartel eles pegaram meu pai logo na frente do quartel, já estavam esperando, ele e Luís de Barros, pronto aí entra Luís de Barros, ele e Luís de Barros, e aí ele contou que disseram que iam levar meu pai em casa, quando tomaram outro rumo, outro itinerário. Aí meu pai disse assim, ‘mas eu não moro pra esse lado’, e deram logo uma coronhada na cabeça dele e ele ficou desmaiado e depois levaram para as usinas de Renato Ribeiro… chegando lá Renato Ribeiro não quis que matassem meu pai lá… e disse assim: ‘mas se vocês quiserem matá-lo, vão matar em outro lugar, nas minhas terras não’. Foi quando ele foi levado… pra usina de Aguinaldo Veloso Borges e lá disse que foi uma noite toda de tortura. Ele [Cabo Chiquinho] contou que furaram os olhos dele, cego, ele ainda pediu para voltar pra casa. Arrancaram os testículos dele, fizeram ele engolir… colocaram madeira no anus dele. Ele foi empalado, ele foi enterrado vivo, e desenterrado, ele foi amarrado e levantado, puxado nas árvores e soltado lá de cima, e foi queimado, e por fim ele disse que o meu pai era forte, resistiu muito à morte, e eles terminaram de matá-lo de faca e tiro, e Nego Fuba como já está no poder, não sei de que, mas ele já tinha sido tirado do quartel alguns dias, já estava debilitado, já estava fraco, morreu logo“. (Náugia Araújo, filha de Pedro Fazendeiro, relatando sobre a morte de seu pai)

Levou bolos de palmatória nas mãos e nas nádegas; que nesta mesma dependência obrigaram o acusado a colocar os testículos espaldados na cadeira; que Miranda e o Escrivão Holanda com a palmatória procuravam acertar os testículos do interrogado; que tal fato não ocorreu porque o interrogado saiu da posição em que se encontrava correndo, inclusive, que, em uma das oportunidades a palmatória que era empunhada por Miranda havia lhe atingido os testículos do acusado; que, por esse fato, o interrogado tomou remédio na Sec. de Seg. e na Casa de Detenção, encontrando-se até a presente data com dores; que quando o acusado foi colocado na posição já descrita anteriormente, estava com os braços algemados e foi seguro por três policiais; que nesta mesma ocasião, o acusado sofreu o chamado “telefone” […] que, em virtude deste castigo, o acusado passou uma série de dias sem estar ouvindo; que três dias após o acusado ao limpar o ouvido notou que este havia sangrado“. (Pedro Coutinho de Almeida relatando sua prisão, onde foi levado para a Secretaria de Segurança do Recife)

“[…] foi preso em novembro de 1964, em Jaboatão-PE. Na ocasião tentou fugir, mas ficou agarrado em um arame farpado. Sofreu com maus tratos e pancadas, falando mesmo que passou por um “pau louco”, tendo levado “telefones” que romperam seus tímpanos. Passou três ou quatro dias no DOPS-PE. Foi para João Pessoa e depois retornou para Pernambuco, sendo levado em seguida até Fernando de Noronha, ficando aproximadamente seis meses na ilha. Lá fizeram um fuzilamento simulado. Finalmente preso até 1966 na Casa de Detenção do Recife, tendo saído com um habeas corpus. Aproveitou a soltura e fugiu para São Paulo, mas foi preso anos depois, em 1972. No DOI-CODI sofreu ameaças e espancamentos. Foi torturado por Brilhante Ustra com “pau louco” e “cipó de boi”. Passou por choques elétricos, cadeira do dragão, pau-de-arara, afogamentos, crucificação. Além de Ustra, cita um torturador conhecido como “Jesus Cristo” [ou Dirceu] que quase matou Martinho Campos com choques. Por fim, ficou preso no Presídio Tiradentes e depois no Carandiru, até ser solto em 1974“. (Trecho narrado pelos pesquisadores sobre as prisões de Martinho Leal Campos)

“Educar para nunca mais”

O desmonte da organização sindical, esvaziamento da força do movimento estudantil, cultura do medo, cultura do sigilo do Estado (dificuldades na transparência pública), são alguns dos resquícios históricos da Ditadura Militar na Paraíba, de acordo com Lúcia Guerra.

Implantação do Memorial da Democracia, para dar continuidade as pesquisas e divulgação da Ditadura na Paraíba. O memorial vai ser instalado na Fundação Casa de José Américo, na Orla de Cabo Branco, em João Pessoa. “Terá um papel importante para divulgar esses resultados da Comissão da Verdade. Além de dar continuidade, porque muito ainda tem a ser feito”, destacou Lúcia.

A pesquisadora ressaltou ainda que o conhecimento sobre a Ditadura Militar precisa de uma forte ação educativa, com o ensinamento da lógica de “educar para nunca mais”, para que a juventude saiba o que significa um estado de exceção. Atrelando as ações educativas com a comunidade, para que o povo também tenha acesso as verdadeiras informações.

Ela ainda defende a implantação de um Política de Arquivos, para que haja acesso a mais documentos e fontes. “Muitos acervos dentro da própria Paraíba [ainda] precisamos ter acesso. Vão comprovar efetivamente as ações do Estado. É preciso essa conjugação de esforços, para que isso continue como pauta do dia. Não para comemoração, mas para saber o que realmente aconteceu, o que significa um estado de exceção, o cerceamento da liberdade, o que é viver numa ditadura. Para que possamos ter pensamentos críticos e adotar posições políticas diante dos acontecimentos no Brasil ontem, hoje e no futuro também”, disse Lúcia.