As propostas em discussão de ampliar a participação privada no setor de saneamento vão na contramão de tendências internacionais e não podem ser encaradas como panaceia.
A afirmação é do relator especial da ONU em direitos humanos em água e saneamento, o brasileiro Léo Heller.
“A experiência internacional mostra que a iniciativa privada coloca recursos limitados para expandir os serviços. Em vários países, o que ocorreu é que buscam recursos nos bancos públicos, ou usam recursos arrecadados da tarifa, cobrando um excedente para investimentos”, diz. “Essa atração do recurso privado, como se fosse uma panaceia para resolver a crise fiscal, me parece algo falacioso.”
Em entrevista à Folha, ele aponta riscos da medida. “Não sou opositor a qualquer forma de participação privada. Apenas receio que o modelo proposto é de transferência quase que integral. Se você vende uma Sabesp, não recompra no futuro”, afirma ele.
Para Heller, a descontinuidade das políticas públicas justifica o atraso do Brasil no setor. Ele propõe que o marco legal inclua a definição de água e esgoto como direitos humanos.
Há um cenário muito desigual entre as diferentes regiões no acesso à água e rede de esgoto. O que explica essa distorção? Se quiser entender a desigualdade no Brasil, basta olhar para o saneamento. É o melhor retrato de como o Brasil é desigual. Uma pesquisa recente comparou dois perfis populacionais. O primeiro é de uma pessoa que mora no Sudeste, em área urbana, branca, com alto nível de educação. E outra que mora no Nordeste, em área rural, negra e com baixo nível de educação. A chance da primeira ter acesso ao serviço em relação à segunda é cem vezes maior.
Infelizmente o saneamento reflete a sociedade brasileira, uma das mais desiguais no mundo. O que tem ocorrido é que as políticas, em vez de enfrentar, acabam ignorando essa desigualdade. Quando a política é neutra nesse enfrentamento, ela não diminui ou mantém, mas aumenta o problema. Uma política necessária seria reconhecer essas pessoas excluídas dos serviços não só do saneamento, mas de boa moradia, atenção à saúde, renda e alimentação. O saneamento é uma camada a mais em várias camadas de vulnerabilidade.
Como o senhor avalia a situação do Brasil? Nem muito pior nem muito melhor do que países com desenvolvimento semelhante. Fiz várias visitas a países em desenvolvimento para avaliar a situação dos direitos humanos e esgotamento sanitário e percebo que em todos há desafios e avanços. Alguns têm sistemas mais estruturados, mas isso depende do porte do país e da cultura organizacional. No Brasil, era de se esperar que, a essa altura, os índices fossem melhores.
O que explica essa dificuldade em avançar? O que chama a atenção na trajetória do saneamento no Brasil é a descontinuidade das políticas públicas. Cada governo altera o que fez o anterior. Se tivesse havido uma política mais contínua, desde os anos 1970, tenho certeza que os índices seriam melhores.
Também tem havido muita descontinuidade de financiamento público. No Brasil, o financiamento federal para saneamento é ainda essencial, e isso ocorre tanto por empréstimos que vêm via fundo de garantia quanto pelos recursos orçamentários ou “não onerosos”. O que preocupa são os critérios de alocação desses recursos. Hoje eles viraram sinônimos de emendas parlamentares, que são uma soma dos olhares particulares de cada deputado e senador. Isso é muito problemático e não traz uma visão de planejamento.
Há a necessidade de R$ 600 bilhões para universalizar o saneamento. Mas com a crise fiscal, como resolver? Isso ocorre por conta da crise fiscal, mas também pela emenda do teto de gastos, que afeta não apenas o saneamento. O Brasil embarcou em um terreno perigoso, que gera ausência de desenvolvimento.
Como obter esses recursos? O Plansab [plano nacional de saneamento básico] fala que, se você tem um sistema bem organizado de água e esgoto, ele fica autossustentável. Existem sistemas que conseguem melhorar seus serviços sem recursos externos, apenas internamente. Daí a ideia no Plansab de medidas estruturantes, de fortalecimento do gestor. Tem um problema importante que é de escala.
Municípios muito pequenos não conseguirão. Por mais que tenham apoio dos prefeitos, é difícil ter arrecadação suficiente. Só conseguiria se tiver aporte com taxas e impostos arrecadados pelo município. A saída para isso é a criação de consórcios e blocos regionais para que vários municípios pequenos tentem trabalhar em conjunto. É um modelo interessante.
O que é necessário para essa expansão? Hoje a lei diz que é de autonomia do município decidir se deseja se consorciar com o município vizinho. Já o projeto de lei tenta fazer uma junção vertical definindo os blocos de forma artificial. Acho que não vai funcionar e tenho dúvidas sobre a constitucionalidade. Uma lei federal não pode determinar a um estado como ele se organiza. É tarefa do próprio estado e que depende de anuência dos municípios. O consórcio é uma boa saída, mas que dependeria de mais incentivo e publicidade para expandir.
A proposta do novo marco legal prevê abertura ao setor privado. Como avalia? A narrativa do projeto é que, se o governo federal não tem recurso, vamos buscar na iniciativa privada. Por duas maneiras: a primeira é capitalizando com a venda dos ativos das empresas. Outra é o próprio setor privado investir e aportar recursos para expandir os serviços. Vejo problemas nas duas.
A Folha publicou que a arrecadação [com a venda de ativos] seria de R$ 140 bilhões [segundo o Ministério da Economia].
É um número bem inferior à necessidade. Ainda que se arrecade isso, esse recurso não necessariamente vai para o setor de saneamento, ele pode ir para o governo do estado, que vai decidir o que quer fazer.
O discurso que apoia a mudança na lei é ‘vamos arrecadar recursos com a venda e atrair investimentos privados nas obras de expansão do setor’. Mas a experiência internacional mostra que a iniciativa privada coloca recursos muito limitados para expandir os serviços de saneamento.
Em vários países, o que ocorreu é que a iniciativa privada busca recursos nos bancos públicos, e o BNDES tem uma linha para isso, ou usa recursos arrecadados da tarifa, cobrando tarifa com excedente para investimentos. Essa atração do recurso privado, como se fosse uma panaceia para resolver a crise fiscal, me parece algo falacioso. Não tem sustentação na realidade.
Um dos argumentos a favor da privatização é que estatais têm tido poucos avanços ou estão sem recursos. Existem companhias com muitas deficiências, principalmente as menores. A saída é apoio por parte do governo federal para recuperar essas companhias e melhorar o desempenho. Apoio técnico, administrativo e financeiro. Para universalizar o acesso aos serviços, países desenvolvidos investiram muito recurso público. E os que privatizaram, fizeram isso depois que a universalização já tinha sido alcançada. Em alguns lugares, a iniciativa privada é quase que uma operadora, que atua de forma diferente da que está se pensando no Brasil, de vender as companhias e seus ativos.
Dos vários modelos de privatização, o mais comum é o da concessão, em que os ativos permanecem na mão do Estado, e a concessão é por tempo limitado.
Essa é uma associação um pouco menos arriscada. Já esse modelo pensado no Brasil pelo projeto de lei tem semelhança com modelos do Reino Unido e outro do Chile, que venderam suas companhias. O Reino Unido, quando privatizou, já tinha uma universalização. E o Chile é muito menor que o Brasil, com nível de desenvolvimento superior.
Quando a participação privada pode ser uma alternativa? O setor privado sempre participou do saneamento e ainda participa. Mas em geral em tarefas mais bem especificadas, ou de curto prazo, como construção e elaboração de projetos, ou serviços de manutenção. Há uma zona cinzenta, nem zero de participação ou participação plena.
Existem nuances em que se admite a participação privada, mas a discussão é quando essa operação envolve serviços essenciais e é de longo prazo. Não sou opositor a qualquer forma de participação privada. Apenas estou receando que o modelo que está sendo proposto é um modelo de transferência quase que integral do setor de saneamento público para o privado. Se nos arrependermos, não temos como voltar atrás. Se você vende uma Sabesp, não recompra no futuro.
Em um país desigual como o Brasil, com diferenças entre o urbano e o rural, capitais e interior, isso é temerário. O setor privado tende a ser seletivo, prefere sistemas maiores, mais lucrativos. E nosso desafio é diminuir a desigualdade.
O que podemos aprender com países que alcançaram a universalização do saneamento? A primeira lição é muito investimento público. Europa, EUA e Japão passaram por forte investimento em infraestrutura. Depois, forte investimento na gestão. Eles têm profissionais bem qualificados e sistemas com muita estabilidade.
Esse é um problema do Brasil: há descontinuidade grande. Muda o prefeito e muda toda a equipe que dirige o sistema. Muda o governador, muda a gestão da companhia. Países mais desenvolvidos são muito mais estáveis nas políticas.
O senhor defende definir legalmente saneamento como um direito humano. Por quê? Em 2010, o Brasil votou favoravelmente à resolução da ONU que reconheceu água e esgoto como direitos humanos. Isso deveria resultar em reflexos na lei nacional, especialmente a Constituição, mas não ocorreu. Uma alternativa seria aproveitar a revisão da lei 11.445, de 2007 [marco legal do saneamento]. Minha proposta é que o artigo 1º seja que água e esgoto são direitos humanos.
Se a lei ordinária reconhecer, já é um passo. Dizer que o serviço deve ser prestado com igualdade e sem discriminação faz com que os prestadores passem a ter que dar mais prioridade a quem vive em situação vulnerável. Mudar a lei é um passo importante, embora não suficiente. Se está em lei, os reguladores devem garantir que seja cumprida.
RAIO-X
Léo Heller, 64, é relator especial da ONU para os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, cargo que ocupa desde 2014, pesquisador da Fiocruz. Engenheiro civil pela UFMG, é mestre em saneamento, meio ambiente e recursos hídricos e doutor em epidemiologia pela mesma universidade. Fez pós-doutorado na Universidade de Oxford, no Reino Unido. Informações são da Folha de São Paulo.