O Brasil não é para principiantes – não mesmo. Esse jargão político nunca fez tanto sentido como hoje, nesse cenário de pseudocataclismo social. Insiro o “pseudo” porque há muito artificialismo nisso tudo, muita coisa que é deliberada e sofisticadamente manietada através de meios diversos.
O deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), por exemplo, ainda ostenta o título de presidente da Câmara Federal o que, diante dos fatos, parece o roteiro de um espetáculo tragicômico. Cunha contou, até enquanto pode, com o apoio da grande mídia e da oposição e agora vê seus processos criminais andarem a passos de tartaruga enquanto ele “deita e rola”, manipula com os institutos aos quais dispõe através do cargo em que, capciosamente, se segura. É ele que está à frente do impeachment da presidente Dilma Rousseff, é o principal articulador – apesar de agora contar com reforço providencial do vice-presidente Michel Temer.

Cunha projetou, ao final do ano passado, que conseguiria levar a instabilidade política até março de 2016, quando o quadro econômico do país se tornaria insustentável ante a ingovernabilidade política. Isso, então, geraria a convulsão e o respaldo popular necessários para pavimentar o impeachment. Pouco importa se há base legal para afastar a presidente, o que claramente não há – a menos de que se faça uso de muita má-fé e do sofismo jurídico mais rasteiro.
O jornal Valor Econômico, considerado uma publicação de linha conservadora, publicou, recentemente, uma matéria em que avalia que, caso seja usado o mesmo critério do pedido de impedimento de Dilma, nada menos que 16 dos 27 governadores do Brasil deveriam perder o mandato. Nessa perspectiva, algumas centenas de prefeitos dos mais de cinco mil municípios brasileiros também entrariam no bolo.
O povo, lamentavelmente, sempre foi usado como massa de manobra – seja para bons propósitos, seja para os mais nefastos, como acontece agora. Somos tão pobres de referências que basta algum pretenso salvador da pátria aparecer e nós logo nos agarramos a ele como se dessa única figura dependesse o bem maior da combalida nação tupiniquim.

A cultura do messianismo não parece ter um fim próximo. O nosso grande líder, redentor político e moral do país, já foi o Collor (“O caçador de marajás”), chegou perto de ser Marina Silva (com suas opiniões e posições bem firmes, claras e definidas, como conhecemos na campanha de 2014…), já foi o ex-presidente do STF, o Joaquim Barbosa e sua sanha justiceira e agora, na mesma linha, é o juiz federal Sérgio Moro, com Jair Bolsonaro correndo por fora. Que belo cataclismo e vácuo referencial, hein, Brasil?
“Dormia, a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída, em tenebrosas transações…”
Obviamente, o governo atual e a presidente Dilma forneceram boa parte da munição necessária para os ataques que tem recebido. Contudo, nem o melhor estadista que existe ou que já existiu conseguiria, nos moldes da democracia representativa e seus sistemas de organização política, promover quaisquer ações governamentais de impacto com um parlamento completamente hostil e sob a ameaça constante de ser derrubado, deste modo, um congresso praticamente paralisado, sem encaminhar nada de relevante aos interesses do país.
No Brasil, onde o presidencialismo de coalizão existe como uma espécie de parlamentarismo disfarçado e chantagista isso se amplifica em proporções apocalípticas. Nesse modelo, os partidos se reúnem em torno do poder central e se articulam para aprovar projetos de interesse do governo – geralmente em troca de cargos e benesses políticas. O Partido dos Trabalhadores (PT) teve 13 anos à frente do governo central, altos de popularidade invejáveis, teve estabilidade, mas não teve habilidade e vontade política suficientes para levar à frente uma reforma política ampla e democratizante.
Quando o sistema político viciado anacrônico que temos estava tranquilo e era favorável à governabilidade, o partido infelizmente deu para trás, dormiu nos louros da popularidade. Não dá para dizer de forma alguma que o golpe que se aproxima se justifica nessa lacuna, mas ela certamente tem sua fatia de responsabilidade. Omissão, às vezes é pior que o erro crasso. Quando os dois se juntam então, temperados por uma conjuntura amplamente desfavorável, o resultado é explosivo.

O roteiro do Golpe
Eis o roteiro previsto para o (neo)golpe grosseiramente travestido de ação republicana: Dilma é ‘impeachmada’, assume o Temer, que já negocia, inclusive, a composição do novo governo com ampla receptividade do PSDB e de outros partidos ditos da base de sustentação do (natimorto) atual governo, os processos de cassação da chapa são esvaziados no TSE – já que não interessa derrubar um presidente do establishment econômico, com apoio da grande mídia, do oligopólio empresarial e do mercado financeiro.
O PMDB dará um jeito de “salvar a pele” de Cunha, seu processo será esquecido com o tempo, não haverá nenhuma reforma política e as velhas estruturas de poder, viciadas e oligopolizadas, ficarão intactas. O judiciário, antes visto como o poder isento e independente, irá referendar o status quo e lhe conferir um caráter de pretensa legalidade, de normalidade democrática. Nada muda, assim como aconteceu com o Collor – só que com a diferença fundamental de que Dilma não é formalmente acusada nem julgada por crime algum e há focos de resistência contra seu afastamento, ou seja, seu impedimento é na verdade um golpe político mal disfarçado. Nada de novo no front, apenas mais uma manobra à brasileira. E assim a banda toca e o povo dança.