Revolução de 30: “Quando se esvai e morre, mais que a memória, fica a assombrar os espectros”

1930 Morreu. Mas como dói – Completou-se 85 anos em outubro da ruptura histórica de 1930, comandada por Getúlio Vargas.  Trata-se de processo quase esquecido, que não vejo ninguém recordar neste 2015 de crise. Contudo, nem sempre foi assim. Além de comemorado em passado recente com loas em praça pública, 1930 consiste no tema mais esquadrinhado e estudado, visto e revisto da historiografia brasileira do século XX.

1930: um assunto morto e enterrado. Será? Nos termos teóricos de Gramsci, sem dúvida o Bloco Histórico (conceito que, em resumo, significa as relações mútuas e resultantes entre as classes, segmentos de classe e indivíduos, mais a sociedade e o Estado) de 1930 é passado morto. Não mais existe nesga. Quando faleceu? Aos que não sabem, dou a notícia: o falecimento do Bloco Histórico de 30 deu-se, mais ou menos, em meados da década de 1980: no intermezzo do fim da ditadura e do começo da chamada Nova República, processo que o o jornalista Jânio de Freitas chamou, à época, de transição transada.

O sinal mais evidente do funeral de 30 foi a quebra do Estado que denomino de desenvolvimentista-conservador na famosa crise da dívida externa, em 1982, nos estertores do regime militar. Aquela crise – que se parece formalmente com a atual- não era apenas de circunstância, mas, visto de hoje, que com ela estava-se indo, definitivamente, a forma estatal que arrancou o Brasil da condição de país agrário e o levou à condição de país capitalista industrializado e socialmente desigual. Parafraseando o poeta Carlos Drummond de Andrade – também ele um componente fundamental do bloco histórico -, trinta é um retrato na parede. Mas como dói. Quando se esvai e se morre, mais que a memória, fica a assombrar os espectros, atualmente redivivos e assombrados do assim chamado “lulismo”, autêntica esfinge truncada do varguismo.

De toda maneira, ao afirmar que o bloco de 1930 morreu, quero dizer que ele cumpriu a missão a que se propôs. Realmente, era uma complexa engenharia política dirigida pelo Estado, uma amálgama de classes sociais decrépitas e emergentes, oligarquias regionais e classe operária, empresários nacionais e capital estrangeiro, militares e tecnocratas, intelectuais e sindicatos, que só poderia dar vetor e fazer sentido num lugar enigmático como o Brasil. Pois bem, contemplando do posto avançado de hoje a obra, à maneira da coruja de Minerva de Hegel, o resultado é uma formação social que um Florestan Fernandes, por exemplo, crítico da obra ainda sendo feita, denominou de capitalismo tardio dependente e subdesenvolvido.

O Brasil não é Uganda ou o Afeganistão, mas também não é os Estados Unidos ou a Alemanha. Para compreender a particularidade da posição brasileira no concerto mundial, temos que mergulhar na história do país. E na história do Brasil contemporâneo, a assim chamada Revolução de 1930 apresenta-se como uma data capital. Beneficiamo-nos, entre os decênios de 1930 e 1970, de uma onda longa expansiva na economia capitalista mundial. Como herança desse período histórico, a problemática brasileira passou a ser a mesma – nos termos de Ernest Mandel – do capitalismo em sua fase tardia: um regime de acumulação relativamente completa, um Estado e uma socie dade civil articulados.

Porém, esse período histórico não deve ser fantasiado. O Brasil teve, sem dúvida, um processo de desenvolvimento econômico, crescimento industrial, urbanização e fortalecimento da sociedade civil, mas ao não talante de saltar por cima das vicissitudes do processo de desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo mundial, que situa o Brasil na esfera dependente do globo.

Esse o ponto frágil do processo brasileiro de modernização, e ademais latino americano; não ocorreu entre os países latino-americanos que saltaram da periferia para a semiperiferia do capitalismo durante a vigência da onda longa expansiva do capitalismo (Brasil, México e Argentina), um processo de industrialização orgânico, uma autonomização da dependência do Estado nacional em relação ao poder mundial, uma independência da sociedade civil face ao Estado.

Por tudo isto, está correto Florestan Fernandes, ao afirmar, que “a ‘revolução burguesa’ no Brasil não se deu pela burguesia nacional, mas pelo capital monopolista. Ao utilizar a expressão “revolução burguesa” para designar o processo de modernização das estruturas produtivas e sociais do Brasil, Fernandes não está utilizando o conceito ao molde de identidade com as revoluções burguesas clássicas, como, principalmente, a francesa, onde, em sangrenta luta movimentada no seio da sociedade civil, a nova classe ascendente, a burguesia, logrou desalojar do poder de Estado a monarquia absoluta representante do poder feudal. Não. O conceito de “revolução burguesa”, aqui, diz respeito a um processo de longa duração, referente ao demorado processo brasileiro de transição ao capitalismo. O conceito de “revolução burguesa”, assim, apanha no seu âmago não apenas as características “revolucionárias” de uma revolução, mas, também, paramenta as contra-revolucionárias e desintegradoras, em especial o aproveitamento e reforço, pelo capital monopolista, de todos os elementos pré-capitalistas de atraso.

O fato é que, tivemos uma burguesia incapaz de conduzir autonomamente, sem o amparo forâneo, a “transformação capitalista” e, portanto, de conciliar revolução nacional e revolução democrática, mas que nem por isso (e talvez exatamente por causa disso), jamais deixou de estar no centro de controle do poder econômico, social e político da sociedade brasileira. Essa questão é decisiva, e pode ser considerado o eixo da particularidade brasileira de objetivação não-clássica do capitalismo. Conquanto encetado com a participação fundamental do capital monopolista e financeiro (principalmente estrangeiro), não houve no processo de transformação capitalista brasileiro nada parecido com uma ocupação direta do estrangeiro no Estado ou no território nacional, numa situação onde as elites locais fazem o papel de simples marionetes. Para o bem e o mal, fomos protagonistas do que nos tornamos.

Não devemos jogar a criança junto com a água suja do banho. No tocante ao Bloco Histórico de 1930, temos a obra (o capitalismo tardio dependente) e o processo (o complexo e contraditório movimento de mudanças sociais). Contestar a obra nem de longe significa abrir mão de analisar o processo.