Queiroga inclui ‘carta branca antivacina’ em plano de imunização contra Covid-19

O Ministério da Saúde acaba de criar mais um instrumento para dificultar a vacinação de crianças contra a Covid-19. Depois de divulgar uma nota técnica sugerindo que a vacinação de crianças contra a Covid-19 não é obrigatória, na direção contrária do que prevê a lei, a pasta agora oficializou uma espécie de “carta branca” para responsáveis antivacina alegarem que a vacina pediátrica é contraindicada para seus filhos.

Trata-se de um atestado de “contraindicações relativas”, um documento que, na avaliação de especialistas ouvidos pela equipe do blog, poderia ser apresentado por qualquer médico fora das especificações oficiais.

Incluída na nova versão do Plano de Operacionalização (PNO) da vacinação contra a Covid-19, essa previsão de contraindicação relativa é genérica e, na prática, permite que os pais aleguem qualquer justificativa para escapar da imunização.

O documento provocou indignação entre os membros da comunidade científica e entidades representativas de médicos, uma vez que, por lei, só a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem competência para definir as contraindicações da vacina – em bula e com base nos estudos clínicos.

“Não existe contraindicação relativa. Quem define as contraindicações a partir dos estudos com imunizantes é o órgão regulatório, no caso do Brasil, a Anvisa. Uma contraindicação também pode surgir com o tempo, quando algum efeito adverso venha a acontecer em algum grupo específico e esteja relacionado à vacina”, explica a pediatra Isabela Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

Para Ballalai, o documento editado pela Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19 (Secovid), deve ser imediatamente revisto.

Essa é a 12a versão do Plano Nacional de Operacionalização é a primeira editada desde que o Ministério da Saúde deu início à vacinação de crianças. É, também, a primeira vez que surgem essas “contraindicações relativas” no documento.

As versões anteriores sempre citaram expressamente as contraindicações de cada vacina, de acordo com a as especificações da Anvisa – como indivíduos com hipersensibilidade ao princípio ativo do imunizante, pessoas com Covid-19 e aquelas que apresentaram reação anafilática a uma dose anterior da vacina contra o Sars-CoV-2, além de outros casos raros.

Nesta edição do PNO, porém, a Secovid também se baseou numa resolução do Conselho Federal de Medicina que institui o atestado médico como “o instrumento utilizado para se afirmar a veracidade de certo fato ou a existência de certa obrigação”.

Ballalai afirma, contudo, que um atestado médico não pode deliberar sobre uma contraindicação não prevista pela Anvisa ou pelo fabricante da vacina.

“Isso contraria o código de ética médica e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O médico não tem como definir clinicamente a contraindicação. O próprio CFM já defendeu que a prescrição da vacina não seja uma responsabilidade do médico, já que é uma questão de saúde coletiva e não individual. Nossa obrigação é seguir as contraindicações já previstas pela Anvisa e identificar naquela pessoa (criança ou não) se existe alguma delas”.

Nos bastidores, a redação genérica é entendida como mais uma submissão do Ministério da Saúde à agenda antivacina. O boicote oficial tem surtido efeito: os índices de imunização infantil estão baixos em todo o país.

Lígia Kerr, representante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) na Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização da Covid-19 (Ctai), que assessora o Ministério da Saúde, avalia que o conceito de “contraindicações relativas” é despropositado.

“Nós fomos totalmente contra isto. Pacientes com problemas já são acompanhados por profissionais no caso de imunizações, não há necessidade deste tipo de previsão. No caso da vacina contra a Covid-19, todas essas especificidades foram levantadas para que pais e profissionais antivacina atuem na contramão da vacinação que sempre foi realizada pelo PNI”, diz Kerr.

Em janeiro, a Secovid chegou a organizar uma audiência pública para discutir a aprovação da vacinação de crianças, que já havia sido autorizada pela Anvisa. A convocação, inédita para o tema, incluiu participantes abertamente antivacinas que fizeram uso de seu tempo para disseminar desinformações sobre imunizantes.

Dados de médicos pró-vacina que participaram da reunião chegaram a ser vazados para deputados federais bolsonaristas de dentro da pasta. Ao lançar a campanha de imunização infantil, o ministério recomendou mais de uma vez que responsáveis buscassem orientação médica antes de vacinarem seus filhos.

A insistência da Secovid em considerar a vacina pediátrica não obrigatória, contrariando o ECA e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, levou a Rede Sustentabilidade a entrar com uma ação no STF contra a medida.

Procurados, o Ministério da Saúde e o CFM não se pronunciaram até o fechamento desta reportagem.

Do G1.