O que se sabe sobre a causa das mortes durante entrega de ajuda humanitária em Gaza

Ao menos 112 pessoas foram mortas e 760 ficaram feridas durante a entrega de ajuda humanitária na Faixa de Gaza na madrugada desta quinta-feira, segundo o Ministério da Saúde do território. De acordo com autoridades palestinas, soldados israelenses teriam disparado indiscriminadamente — usando armas de fogo, tanques e drones — contra a população, que havia se reunido para buscar os mantimentos.

Em nota, as Forças Armadas de Israel afirmaram que as mortes decorreram de uma confusão durante a entrega da ajuda, com os soldados somente tendo disparado para o ar e contra as pernas de um grupo de residentes que se afastou do comboio humanitário e se aproximou de uma unidade militar israelense. Em uma entrevista coletiva mais tarde, o porta-voz das Forças Armadas de Israel, Daniel Hagari, afirmou, porém, que só foram feitos disparos de alerta para dispersar a multidão, e disse que drones que sobrevoavam a área não realizaram ataques aéreos.

— [Os soldados dispararam] apenas em face do perigo, quando a multidão se moveu de uma forma que os pôs em risco — afirmou. — Apesar das acusações, não disparamos contra aqueles que buscavam ajuda humanitária (…) nem no comboio, por terra ou ar.

De acordo com Hagari, as pessoas foram mortas devido à aglomeração e ao atropelamento não intencional pelos caminhões de ajuda, que tentavam fugir do tumulto.

Entenda o que se sabe até o momento sobre a tragédia

A tragédia começou quando 38 caminhões com suprimentos atravessavam uma rotatória na rua al-Rasheed, no bairro de Sheikh Ajleen, no oeste da Cidade de Gaza, onde centenas de palestinos aguardavam a ajuda. Segundo Hagari, os caminhões vieram do Egito, passaram pelo posto de controle de Kerem Shalom, em Israel, e tinham como destino o norte de Gaza, sendo escoltados pelas forças israelenses durante o trajeto. Os primeiros disparos foram ouvidos, segundo a rede Al-Jazeera, por volta das 4h40 do horário local, quando ainda estava escuro, o que pode ter colaborado para o tumulto.

Testemunhas relataram à AFP que viram milhares de pessoas correndo na direção dos caminhões de ajuda humanitária que se aproximavam. Uma pessoa afirmou que os veículos com as doações chegaram “muito perto de alguns tanques do Exército israelense que estavam na área, e milhares de pessoas simplesmente avançaram sobre os caminhões”. Nesse momento, afirmou, “os soldados dispararam contra a multidão”.

Segundo um alto funcionário do Exército de Israel, os soldados primeiro dispararam “tiros de advertência” quando as pessoas correram em direção aos caminhões, e só depois abriram fogo.

— Foram disparos limitados, não foi um acontecimento maciço do nosso ponto de vista — acrescentou a fonte à AFP.

Moradores que aguardavam a chegada da ajuda juntamente com a multidão relataram outra versão dos fatos:

— Estava esperando desde ontem. Por volta das 4h30 desta manhã, os caminhões começaram a chegar. Quando nos aproximamos dos caminhões de ajuda, os tanques e aviões de guerra israelenses começaram a disparar contra nós, como se fosse uma armadilha — relatou à al-Jazeera, sob anonimato, uma testemunha.

Nas redes sociais, diversos vídeos mostram o momento da tragédia. Em um deles, verificado pela agência Reuters, várias pessoas aparecem desacordadas e feridas. Uma filmagem transmitida por uma afiliada da rede al-Jazeera mostra o momento em que uma multidão tenta fugir, no escuro, enquanto diversos disparos são ouvidos ao fundo, atribuídos pelo canal ao Exército de Israel.

Feridos

De acordo com um correspondente da al-Jazeera em Gaza, as ambulâncias não puderam chegar à área porque as estradas estavam “totalmente destruídas”. Grande parte dos mantimentos que seriam entregues estão encharcados de sangue, acrescentou. Imagens mostram corpos de pessoas mortas e feridas sendo levadas em caminhões e charretes. As vítimas foram encaminhadas para quatro hospitais: al-Shifa, Kamal Adwan, Ahli e centros médicos da Jordânia em Gaza.

Segundo Jadallah al-Shafei, chefe do departamento de enfermagem do hospital al-Shifa, “o hospital foi inundado com dezenas de cadáveres e centenas de feridos”. Uma parte do centro médico não está funcionando por falta de combustível, utilizado no fornecimento de energia. Também não há medicamentos disponíveis e o estoque de sangue está perto do fim, de acordo com um correspondente da al-Jazeera que está no hospital, cenário que pode elevar ainda mais o número de mortos.

— A maioria das vítimas sofreu tiros e estilhaços na cabeça e na parte superior do corpo — disse o chefe de enfermagem do al-Shifa, em entrevista à al-Jazeera. — Elas foram atingidas por disparos diretos de tanques, drones e armas de fogo.

Versão israelense

No comunicado, o Exército israelense afirmou que, quando o comboio chegou ao entroncamento na Cidade de Gaza, “residentes cercaram os caminhões para saquear os suprimentos que eram entregues. Como resultado do empurra-empurra, pisoteamento e atropelamento pelos veículos, dezenas de palestinos foram mortos e feridos”. De acordo com Hagari, a aproximação da Cidade de Gaza ocorreu às 4h45.

Ainda segundo o comunicado, os caminhões continuaram se dirigindo para o norte da Faixa de Gaza, e surgiram relatos de que indivíduos armados dispararam contra os veículos e os saquearam. Nesse momento, diz o Exército de Israel, algumas pessoas na multidão começaram a se aproximar de uma unidade das Forças Armadas de Israel na área, o que fez os soldados fazerem disparos de alerta para o ar antes de atirar para atingir as pernas daqueles que continuavam avançando em sua direção.

Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional, e um dos mais radicais integrantes do Gabinete de Netanyahu, louvou a atitude dos militares, e chamou de “loucura” a manutenção dos envios de itens básicos ao território.

“Deve ser dado apoio total aos nossos heroicos combatentes que operam em Gaza, que agiram de forma excelente contra uma multidão de Gaza que tentou prejudicá-los”, escreveu no X, o antigo Twitter.

Fome aumenta

Após quase cinco meses de guerra entre Israel e Hamas, as Nações Unidas estimam que 2,2 milhões de pessoas, a grande maioria da população, estejam ameaçadas pela fome em Gaza, especialmente no norte, onde destruição, combates e saques tornam quase impossível o transporte de ajuda humanitária. Também nesta quinta-feira, o Ministério da Saúde de Gaza anunciou que mais de 30 mil pessoas morreram como consequência das operações israelenses no enclave desde o início da guerra, em 7 de outubro, desencadeada pelo ataque do Hamas contra Israel, que deixou quase 1.200 mortos e cerca de 240 reféns.

Segundo a Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos (UNRWA, na sigla em inglês), quase 2,3 mil caminhões de ajuda entraram na Faixa de Gaza em fevereiro, com uma média de 82 veículos por dia. O número é 50% menor que em janeiro. Antes do conflito atual, quando as necessidades da população eram menos urgentes, cerca de 500 caminhões entravam no enclave todos os dias. Do O Globo.