Justiça autoriza associação paraibana de Cannabis a cultivar maconha para uso medicinal

Decisão é o primeiro habeas corpus coletivo da esfera criminal concedido no Nordeste

A Câmara Especializada Criminal do Tribunal de Justiça da Paraíba (TJPB), por unanimidade, concedeu nesta quinta-feira (29/02) um habeas corpus coletivo para a ACAFLOR – Associação Canábica Florescer, sediada em João Pessoa, garantindo o direito de cultivo, uso, manipulação, posse, transporte, distribuição e dispensação de produtos de cannabis para fins medicinais (óleo, pomada, flores e outros formatos, conforme prescrição médica) aos seus pacientes associados.

Trata-se do primeiro HC coletivo da esfera criminal concedido no Nordeste. Os outros salvos-condutos para associações de cannabis da região tratam de ações cíveis.

Através do acórdão deferido na Justiça Estadual, a ACAFLOR também se torna a primeira associação da Paraíba com autorização para o fornecimento de flor.

Cauê Pinheiro Costa de Alencar, psicólogo, presidente e um dos idealizadores da ACAFLOR, fundada em setembro de 2022, diz que “a decisão reforça o direito à saúde, tão importante e garantido pela Constituição brasileira, e não limita a nenhuma via de administração, justamente pensando nas possibilidades terapêuticas que os pacientes têm, e têm também autonomia junto com o profissional prescritor pra decidir qual o melhor tratamento pra si, seja bala de goma, seja o uso vaporizado, seja o óleo, cada um para sua diversa finalidade, podendo ter o seu tratamento completo, sem limitação”, afirma.

Fiscalização da Vigilância Sanitária e atuação das forças de segurança

A decisão judicial designa a Gerência Municipal de Vigilância Sanitária de João Pessoa para realizar a fiscalização da produção e funcionamento da associação, e determina que as autoridades de segurança pública se abstenham de deflagrar qualquer medida de persecução penal contra diretoria, colaboradores e associados, como prisão, apreensão dos produtos de cannabis ou qualquer medida restritiva de liberdade.

“Determino seja expedido ofício ao Secretário de Saúde do Município de João Pessoa, para que tome ciência da decisão e que determine ao órgão municipal de vigilância sanitária que efetue fiscalização periódica da atividades desenvolvidas pela ACAFLOR – Associação Cannábica Florescer, para fins cumprir os fins determinados no corpo da presente decisão. E, ainda, seja encaminhada cópia da presente decisão ao Comandante-Geral da Polícia Militar e ao Secretário da Segurança e da Defesa Social, que deverão comunicar aos respectivos serviços de inteligência, para que tomem ciência dos seus termos e dos salvos-condutos expedidos em favor dos pacientes”, assina o desembargador Frederico Martinho da Nóbrega Coutinho.

“Essa é uma decisão muito importante porque mantém e assegura a qualidade do nosso trabalho, os resultados que os nossos pacientes estão tendo e garante que eles vão poder continuar o seu tratamento sem risco de interrupção”, reforça Cauê Pinheiro.

Decisão unânime e inédita no estado paraibano

No voto, Frederico Martinho da Nóbrega Coutinho ressalta que a atual Lei Antidrogas no Brasil (11.343/2006), que criminaliza o uso e o tráfico da maconha e outras substâncias, também vislumbra a utilização de entorpecentes proscritos, por meio de autorização da União, para fins medicinais.

“Destarte, à míngua de regulamentação do uso medicinal da Cannabis sativa e derivados p, cabe ao judiciário, por meio de demandas difusas, dentre elas a impetração de habeas corpus preventivos, ponderar sobre as implicações, principalmente penais, das condutas de pessoas que encontram no canabidiol, por exemplo, alento, não oferecido pelas drogas alopáticas disponíveis, para suas moléstias”, discorre.

Ele destaca jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça em casos semelhantes e a garantia do direito à saúde prometido pelo Estado brasileiro na Constituição Federal, “não se podendo punir alguém por buscar a efetivação de um direito que lhe é assegurado constitucionalmente”.

“A droga tem apresentado potencial de melhorar a qualidade de vida de pessoas acometidas com males crônicos ou de difícil tratamento, sendo direito de cada um a busca por melhores condições de saúde. Por tais ponderações, em razão do sério risco à liberdade e da deflagração de medidas de coerção estatal em desfavor dos pacientes, conclui-se que é cabível a concessão de salvo-conduto para assegurar o uso medicinal”, pontua o magistrado.

Vitória do associativismo brasileiro no Nordeste em prol da cannabis

Para Ítalo Coelho, um dos advogados atuantes no processo junto com a ACAFLOR , a importância da decisão “é grande porque a gente tá num momento, inclusive o STJ tá chamando audiência pública pra discutir as questões do cultivo de cannabis no Brasil e a Anvisa não tem uma norma clara sobre isso, as associações tão nesse limbo regulatório”, comenta.

“A gente tá lutando por uma regulamentação específica das associações, que elas sejam incluídas nesse processo, e essa decisão resguarda dos riscos que são os mais graves, de eles serem presos, enfim, que é o básico né, que o Estado deveria garantir, mas como não garante, essa decisão tem essa salvaguarda”, reflete o advogado.

A ACAFLOR é uma associação privada sem fins lucrativos que atende pessoas que fazem uso medicinal da cannabis. Atua na transformação social e reparação social e histórica, para desmistificar os preconceitos contra a planta. As frentes de trabalho são colaborativas e incluem apoio a pesquisas, organização de eventos e seminários relacionados ao uso medicinal da cannabis, cursos de cultivo e de extração, atendimento médico, entre outras ações. Pacientes têm acesso ao tratamento de acordo com a receita feita por profissional de saúde e são acompanhados pela equipe multiprofissional.

O advogado criminal e de família Maurício Gomes, diretor jurídico da ACAFLOR, destaca que “as associações de cannabis medicinal desempenham papel fundamental no acesso a planta, especialmente diante da inacessibilidade econômica dos produtos oferecidos por farmácias e empresas. A Associação Canábica Florescer – ACAFLOR, como uma dessas entidades, oferece produtos de qualidade a preços acessíveis, além de fornecer cuidado integral aos pacientes e seus familiares”.

Ele ressalta que o habeas corpus permite a associação cultivar a maconha sem risco de ser criminalizada. “O Acórdão da Câmara Criminal do TJPB seguiu a orientação jurisprudencial da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça em julgamento do HC n 802866/PR (2023/0047241-7), que uniformizou o entendimento de que o cultivo de cannabis para extrair óleo para uso medicinal não configura crime”, afirma.

O processo da ACAFLOR também contou com a participação do advogado Emilio Figueiredo, ativista referência da luta pela reforma política de drogas no país.

Bianca Cardial, que atua no direito de pacientes, associações e empresas, lembra ainda que as discussões sobre a maconha no Brasil envolvem múltiplos aspectos sociais que merecem ser tratados.

“A gente tem um país cheio de moralismos, repressões, a luta pelo acesso à cannabis medicinal está diretamente ligada à luta antirracista, à luta antimanicomial, então, ser antiproibicionista hoje é também ser antirracista, é também ser antimanicomial”, declara a advogada. “Estar do lado da Acaflor neste momento é estar do lado de diversas pessoas que precisam do acesso a este tratamento, então, a felicidade é imensa”.