Funcionário do IBGE espancado por bolsonaristas é preso por tentativa de homicídio

Um funcionário do IBGE que trabalha no Censo 2022 foi preso e indiciado por tentativa de homicídio em Amparo (SP) depois de fugir de um bloqueio de bolsonaristas contrários ao resultado das eleições na Rodovia Engenheiro Constâncio Cintra (SP-360). O caso ocorreu na última terça-feira (1º) e o g1 teve acesso aos autos de prisão nesta sexta-feira (4).

Tiago Marcolino Pereira, de 23 anos, alega que foi ameaçado e agredido antes de furar o bloqueio, sendo perseguido e linchado. Ele teve o nariz fraturado e sofreu diversas escoriações pelo corpo. O delegado Rodrigo Sala, que cuida do caso, entende que o servidor do IBGE avançou com a intenção de atingir quem estava fazendo o bloqueio da via deliberadamente, sendo alvo das agressões após o esse fato, e por isso atuou pela prisão dele.

Ao g1, Tiago conta que temia pela vida quando avançou contra o bloqueio ilegal, uma vez que estava cercado por pessoas que desferiam golpes contra o carro, contra ele e que gritavam, entre outras coisas, que o “IBGE trabalhava para Lula”.

“Começaram a gritar que era para eu ligar para o (ministro do STF) Alexandre de Moraes, falavam que eu trabalhava para o Lula, deram socos e chutes no carro, abriram a porta do carro e me deram um soco na cara. O carro estava desligado. Foi aí que liguei e tentei sair dali. Dei a ré, vi que tinha pessoas atrás e parei para não atropelar. Engatei a primeira e tentei desviar das pessoas. Um se feriu porque estava segurando a porta do lado da minha colega”, relata Tiago.

No registro da ocorrência, o delegado responsável entendeu que a versão de Tiago demonstrou ser “inverossímil, na medida em que as testemunhas – inclusive sua colega de trabalho – nega que tenha ocorrido qualquer agressão ou provocação na altura do bloqueio”, e determinou a prisão em flagrante por tentativa de homicídio.

Ao contrário do relatado pelo delegado no auto de prisão, Carmem da Silva Rodovalho, de 47 anos, afirmou ao g1 que Tiago foi agredido já no bloqueio da rodovia, e que eles fugiram pois temiam pela vida.

“O Tiago estava tentando dialogar, mas tinha um mais inflamado. Falou que não iria passar, e chamou outros que cercaram o carro. Falaram que iriam jogar o carro barranco abaixo. Tentaram abrir minha porta, abriram a de trás. Bateu desespero na gente. Deram um soco no Tiago. Foi aí que ele deu uma ‘rézinha’, engatou a primeira e foi. Perseguiram a gente, carro fechando. Foi desesperador”, contou.

Ao g1, o delegado Rodrigo Caldeira Sala disse que indagou a funcionária, e garantiu que ela teria afirmado que não houve qualquer agressão e provocação por parte dos bolsonaristas no bloqueio. “O depoimento oficial já foi prestado, e foi muito claro. Caso o Ministério Público entenda por uma nova oitiva, ela será solicitada”, disse.

O delegado ressalta que no dia solicitou que uma equipe fosse ao local levantar imagens do possível atropelamento, mas não foram encontrados registros ou câmeras de monitoramento no trecho.

Sala destaca que teve de basear sua decisão nos depoimentos de vítimas e testemunhas, e que diante dos “graves fatos” narrados, só não houve maior gravidade nas ações de Tiago por “vontade alheia a ele”, que teria “avançando o bloqueio com intenção” de atropelar quem bloqueava a via.

Sobre as agressões sofridas pelo funcionário do IBGE, o delegado disse que a equipe trabalha para identificar os agressores, que “extrapolaram qualquer evocação de legítima defesa”.

Rodrigo Sala informou que solicitou perícia ao local dos fatos, e que aguarda os laudos para concluir o inquérito, e que a princípio será mantido a natureza do indiciamento por tentativa de homicídio.

‘Fiquei desolado’

Ao relembrar o episódio, Tiago conta que tentou, por diversas vezes, esclarecer aos bolsonaristas que seu trabalho e cargo não era político-partidário. “Tentei explicar que não trabalhava para partido algum. Nesse período minha companheira tentava ligar para o coordenador, mas o sinal do celular não funcionava”.

Segundo o supervisor do IBGE, após o carro ser cercado, a situação foi piorando, e inclusive tentaram arrancar sua colega de serviço do carro, mas não conseguiram abrir a porta do passageiro. Após terem aberto a porta traseiro e o agredido, foi quando decidiu furar o bloqueio, mas defende que buscou desviar das pessoas, ao contrário dos depoimentos de apoiadores de Jair Bolsonaro à polícia.

Nos depoimentos das pessoas que constam como testemunhas e vítimas de Tiago, todos defendem que não houve agressão ao servidor, e que ele acelerou e saiu atropelando pessoas sem tentar desviar ou emitir qualquer sinal visual ou sonoro para alertar a passagem. Apesar do depoimento falar em atropelamento de várias pessoas, há apenas um registro de escoriações em uma das vítimas – a que Tiago alega que estava segurando a porta do passageiro do carro quando tentou fugir do grupo.

Após vencer o bloqueio, os servidores no carro oficial foram perseguidos. Tiago relata que eram quatro carros e duas motos na perseguição, e por diversas vezes tentaram tirá-lo da pista, o que fez com que andasse na contramão por alguns trechos.

Durante a perseguição, uma viatura da Guarda Municipal de Amparo avistou a situação e interveio. Tiago relata que decidiu parar o carro ao ver a viatura na tentativa de buscar ajuda, mas o carro acabou cercado e foi vítima de diversas agressões, entre elas a que provocou a fratura do seu nariz.

Os guardas relataram à Polícia Civil que foi necessário dar um tiro para o alto, de advertência, para dispersar o grupo. Tiago foi então levado ao hospital, e depois encaminhado à delegacia, onde imaginava que irá registrar boletim de ocorrência contra os agressores, e não imaginava que seria autuado por tentativa dfe homicídio.

“Eu fiquei basicamente desolado, por diversas vezes tentei dialogar com o delegado. Entendi que naquele momento tinha uma pressão política. Os agentes por diversas vezes mencionaram conhecer essas pessoas (do ato). Me senti uma pessoa sem direito. Fica a sensação de impunidade”, afirma.

A confusão ocorreu por volta das 10h30 da terça. Tiago permaneceu preso na delegacia de Amparo até o período da noite, quando foi tranferido para a cadeia em Serra Negra, onde passou a noite. No dia seguinte, acabou solto após audiência de custódia, e vai responder pelo caso em liberdade.

Carro do IBGE ficou com marcas das ações dos bolsonaristas do bloqueio antidemocrático em Amparo (SP) — Foto: Arquivo pessoal

Carro do IBGE ficou com marcas das ações dos bolsonaristas do bloqueio antidemocrático em Amparo (SP) — Foto: Arquivo pessoal

O que diz a defesa?

O advogado Sérgio Augusto de Souza, que defende Tiago, disse esperar que os esclarecimentos venham aos autos e que seu cliente possa ser inocentado.

“Eu espero que o Ministério Público, como fiscal da lei, tenha o bom senso de entender que o Tiago é vítima. É algo espantoso, que alguém que quase perde a vida linchado, figura em uma ação penal como alguém que atente contra a vida”, disse.

O que diz a SSP?

Procurada para detalhar o caso, a Secrataria de Segurança Pública (SSP) informou, por nota, que Tiago foi preso em flagrante após um guarda municipal testemunhar o atropelamento de bolsonaristas. Veja na íntegra:

“Um homem, de 23 anos, foi preso em flagrante por tentativa de homicídio na direção de veículo automotor, por volta das 10h30 desta terça-feira (1), na Rodovia SP 360, na altura da cidade de Amparo.

Um guarda municipal atendeu a ocorrência e contou na delegacia que estava com a viatura estacionada na via, quando viu o momento em que um veículo Fiat, com a inscrição do IBGE, veio em alta velocidade no sentido centro da cidade e atropelou vários manifestantes que estavam protestando no local.

Depois de quase colidir com outros carros, o homem seguiu sentido Bairro Tamburi e, ao parar em frente a um condomínio, os manifestantes foram para cima dele na tentativa de agredi-lo, momento em que um guarda civil interveio dando um tiro para o alto.

As partes foram encaminhadas à Delegacia de Amparo, onde após as medidas de polícia judiciária, o condutor do veículo foi autuado em flagrante por tentativa de homicídio”.

Durante trabalho pelo Censo, Tiago Marcolino Pereira, de 23 anos, ajudou a resgatar animal atropelado em rodovia — Foto: Arquivo pessoal

Durante trabalho pelo Censo, Tiago Marcolino Pereira, de 23 anos, ajudou a resgatar animal atropelado em rodovia — Foto: Arquivo pessoal

Trabalho no Censo

Morador de Várzea Paulista (SP), Tiago está no último ano do curso de psicologia e foi contratado como supervisor do Censo 2022 para atuar em Francisco Morato (SP). Como o trabalho na cidade estava avançado, foi designado para ajudar municípios na região de Campinas, como Morungaba (SP), Amparo (SP) e Serra Negra (SP).

Pelo trabalho no Censo, ele conta que recebe R$ 1,7 mil de salário por mês. Com o episódio da prisão após ser agredido, teve um gasto de R$ 5 mil, dividio entre a defesa jurídica e estadia para familiares na noite em que esteve preso.

Apesar de dizer que está receoso de sair às ruas, Tiago espera continuar o trabalho no Censo. Ele aguarda o posicionamento do coordenador sobre qual área irá atuar a partir da próxima segunda-feira (7).

g1 procurou o IBGE para solicitar posicionamento sobre o fato ocorrido com o funcionário, e a reportagem será atualizada assim que o órgão se manifestar. Do g1.