dom josé

Houve um tempo não muito distante em que horizonte era sinônimo de escuridão. As janelas quase sempre se abriam para a possibilidade da dor. E o chão era movediço feito com as pedras do temor, da revolta e da impotência.

Lá estávamos nós. Às vezes, com pedras nas mãos para jogá-las na vidraça contínua do autoritarismo. A matilha por trás do vidro se alimentava de ódio e da claridade abafada de nossas esperanças igualitárias.

Às vezes, nosso olhar espreitava uma fina lâmina de luz por entre as brechas do tempo que filtravam o escuro persistente, se espalhando dia e noite, dia e noite…

A luz era a de um homem chamado José. Ele a cultivava em sua igreja. Distribuía essa luz com a certeza dos que enfrentam com as mãos nuas as dentadas da injustiça.

Houve um tempo em que os sinais estavam fechados. Dias que pesam na memória. Não havia o trânsito das consciências em conflito gerador perante as verdades possíveis dos caminhos do mundo. As verdades jaziam quase todas atropeladas pelo comboio bizarro do Estado de exceção.

Alguém, no entanto, agitava bandeiras contra os descaminhos. Clamava por sinais abertos, defendia encruzilhadas livres. Queria pontes sólidas para o entendimento. Na esquina da catedral da cidade, o bispo José resistia contra os arreganhos de uma ditadura militar.

Um dia, os direitos humanos chegaram feridos à porta da casa de Dom José enquanto ele   cuidava do seu roçado de luz.

Estavam cobertos de uma poeira escura. Parecia pólvora misturada com sangue. Poeira da guerra que os exércitos do mandonismo empreendem desde sempre. Coisa para manter excluídos mais excluídos ainda. Para além das fronteiras da solidariedade, restavam os corpos amassados pelo infortúnio.

A moenda da propriedade concentrada esmagava o seu combustível preferencial. Um modo de vida…modo de morte… desse não mais deveria existir.

O mundo seria muito melhor se isso não tivesse acontecido, pensou o bispo enquanto observava a cena, os direitos humanos ali daquele jeito. Desrespeito, corpos agredidos, mutilados, olhares de desespero, jovens expulsos do futuro, velhos sequestrados do sítio da dignidade.

O sacerdote elevou as mãos. Fez melhor. Elevou a voz. E sua voz e o seu cântico de justiça, e sua voz mais a palavra direitos, a sua voz e uma vontade de salvar alguém do pranto, do ódio, da morte se embrenharam e se multiplicaram pelos caminhos adentro do Nordeste em fogo gritando basta, dizendo não, nós haveremos de resistir a isso hoje.

Os direitos humanos conquistaram um aliado na Paraíba, ser que se fortaleceu perante o Brasil, o mundo também viu a onda que cresceu, direitos para que as pessoas vivam em paz.

Depois disso tudo e de outras histórias, o arcebispo Dom José Maria Pires passou a ser mais ainda ele mesmo.

O homem múltiplo em síntese existencial para o ato transformador.

O clérigo que se fez a forma necessária da razão, atento às proporcionalidades do direito à vida de cada ente a respirar entre nós.

Fez-se razão em nome de um sentimento: a fé. Fé para mover montanhas. As montanhas elegantes da missa de perfume e ostentação em meio às quais garimpou o bem querer sem qualquer preconceito. Em Cristo, com Cristo, por Cristo.

Dom José conquistou o lugar do ser comum cósmico. Comungou pessoas felizes e feridas na universalidade do espírito em sintonia com as vibrações da vida cheia de contradições, saídas e impasses.

Fez-se apóstolo da defesa de quem padece de fome. Assumiu a agenda crítica, inscrita na própria carne, da negritude enquanto emblema revolucionário. Feito no poema, negritude como “forma de viver a história dentro da história”.

Missionário das jornadas da teologia da libertação, professou um Deus que se desprega da Cruz para compartilhar lágrima, riso e pão entre aqueles que acreditam porque sim, entre senões, entre até os que não creem.

Cristão comunitarista, compreendeu, professou e praticou a espiritualidade enquanto campo de ressonância da paz, do perdão, da renovação.

Dom José Maria Pires, arcebispo emérito da Paraíba, foi também escritor, cronista, advogado, professor, até que decidiu mudar para outra dimensão aos 98 anos neste dia 28 de agosto. Vive agora um novo despertar.

Reproduzido do jornal A União, edição de 30 de agosto de 2017.