Não há romantismo na desigualdade das calçadas. Anos atrás fiquei emocionado ao ouvir um educador social revelar a triste resignação de um menino que dormia ao relento: “eu durmo onde as pessoas cospem”, dizia. Há mais de três décadas, em pleno rigor do inverno gaúcho, no centro de Porto Alegre, também ouvi de um homem coberto por papelões e jornais: “não sei se tremo ou se me sacudo”. São profundas as agonias dos desvalidos. A grande maioria não tem opção. Muitas vezes anestesiados pelas drogas químicas ou pelo álcool. Outros tantos, talvez, por alguma rebeldia irrefreável. Nas ruas de tantos encantos, também se vive o fundo do poço. É comum vermos jovens, idosos, crianças, homens, mulheres, brancos, negros, índios, dormindo sob as marquises. Invisíveis para a maioria. Cada caso é único e precisa ser analisado com sensibilidade pelos serviços de assistência. Dorme-se nos becos das favelas. Dorme-se nas calçadas dos bairros nobres. Sempre sob o risco das higienizações fascistas.

Um fato recente, todavia, despertou a indignação de muita gente consciente do país conturbado em que vivemos. Uma centena de jovens entre 17 e 24 anos passou mais de 24 horas numa calçada de Ipanema, no Rio de Janeiro (foto), com o estranho propósito de comprar um novo tênis de uma marca famosa. Um modelo assinado pelo rapper americano Kanye West. Claro, não tenho nada com as escolhas de ninguém. Não me cabe julgar o que cada um trata como objeto de desejo. Portanto, não se trata aqui sequer de um julgamento moral e ético, mas de uma fatal preocupação com os destinos de uma sociedade tão desigual como a nossa. Afinal, o famoso tênis custa a bagatela de R$ 1.199,00. Um valor que representa o sustento mensal de muito trabalhador e muita trabalhadora. Uma afronta? Não sei. Parece-me muito mais uma doença social de novos ricos. Certamente a sociedade de consumo criou as suas próprias cracolândias. A foto que ilustra esse texto, extraída do portal G1, nos mostra que o consumo pode ser uma droga pesada.

Os jovens de classe média que ousaram a dormir na rua para saciar o desejo de calçar uma marca famosa, ironicamente, dividiram espaço com moradores de rua que, dia após dia, dormiam naquelas mesmas calçadas. Um contraste social ultrajante. Quase um deboche de uma fração da sociedade que se acostumou a consagrar irrelevâncias e banalizar existências. Num momento em que o Brasil flutua numa cloaca institucional e na supressão das ordens legais e democráticas, cenas assim merecem o mínimo de atenção. Que tipo de droga pesada transformou esses jovens em zumbis almofadinhas? O que passa na cabeça de alguém com crise de abstinência de uma grife? O que será que sentem quando calçam esse tipo de vulnerabilidade?

Essa rapaziada acabou protagonizando uma cena que faz rir, mas também enoja e entristece. Afinal, estamos vivendo num tempo em que as pessoas que nunca sofreram o racismo na pele, abominam as quotas. Pobre em aeroporto? Uma aberração para alguns. Vivemos dias em que há uma tentativa de criminalizar os direitos sociais que, cá pra nós, não passam de migalhas. Os bilhões que ainda são depositados para os usuários do Programa Bolsa Família, por exemplo, aquecem a economia brasileira de norte a sul. Já os bilhões e trilhões da corrupção são depositados em paraísos fiscais. Em países como a Suíça que estruturam a própria economia no patrocínio do crime organizado. Ficaram ricos mantendo contas secretas de larápios que gastam fortunas roubadas pelo mundo afora. Ou será que o alto padrão de vida da Suíça se deve apenas ao chocolate?

O que podemos considerar ridículo, também apavora. Afinal, poucos podem pagar R$ 1.199,00 por um par de tênis. Cujo custo, aliás, está ancorado na imagem de um ídolo de uma cultura que nasceu nas periferias e se fortalece nas periferias. Lá onde a maioria não tem dinheiro sequer para comprar uma sandália havaiana. Uma linguagem artística nascida nos becos, ironicamente, sustenta esse tipo de insanidade pequeno-burguesa.  São verdadeiras cracolândias do consumo que afloram num momento em que o país vive de perplexidades. As imagens de Ipanema mostram que estamos vivendo uma profunda crise de identidade, de nação, de povo, de bom senso, de formação humana. O país está se transformando num palco de aberrações para uma plateia perplexa com a própria passividade. Segundo o francês Michel Maffesoli, “a sociedade atual está saturada, o que significa que está em processo de desestruturação e reestruturação a partir dos elementos que são ora desconstruídos.” É bom pensarmos sobre isso antes que o pensamento livre seja também criminalizado.