Walter Galvão: tem ódio pra todo gosto espalhado por todo canto

Destamparam geral o caldeirão dos ódios. Tem ódio pra todo gosto espalhado por todo canto. De ódio racial à homofobia, do preconceito contra deficientes à intolerância religiosa, da incitação à brutalidade contra idosos ao bullying que atinge na escola quem não se enquadra a padrões corporais, do ciúme demencial gerador de feminicídio à xenofobia transmitida ao vivo na TV… ódio por todo canto de todo tipo pra todo gosto. Não podemos, não devemos aceitar tudo isso passivamente.

Essa nova onda que se relaciona intimamente com autoritarismo é condão, uma especiaria histórica, ou mesmo fascínio, que emerge no horizonte cultural da civilização contemporânea típica da autocracia que acometeu boa parte do mundo.

Não é só no Brasil que um líder autocrata se desdobra para fundamentar o ódio enquanto linha auxiliar (ou seria preferencial?) de ação política e administrativa.

China, Rússia, Venezuela, Turquia, Egito, Estados Unidos, Índia, Filipinas entre outros, são países que amargam o fardo, que suportam a carga, que arrastam a condição nefasta de serem governados por pessoas e grupos que se caracterizam pela afronta aos direitos humanos, pelo patrocínio da violência, do sexismo e antiglobalismo comunitário, pela pregação do ódio ao migrante, ao dissidente, ao opositor.

O relatório mundial que o Observatório dos Direitos Humanos divulgou neste início de ano aponta sem meias palavras para a fabricação da intolerância por essas lideranças.

Nessa conjuntura, o ódio, commodity bizarra que atravessa os tempos desde o primeiro latejar da consciência humana frente ao desconhecido, ao medo, à repulsa, conquistou patamar inédito de adesão e criou a figura do odiador massivo.

Essa nova persona social – o odiador, a odiadora, de plantão – foi possibilitada inegavelmente pelos meios digitais de transmissão de informação e de interação comunicacional.

O fluxo do ódio nos últimos tempos entre nós pode ser comparável a uma hemorragia, algo incontível e terrível, um descontrole que nos aflige e atemoriza. Fluxo que não se expressa apenas como enfermidade retórica, mas que se concretiza objetivamente no cotidiano.

Os vários linchamentos, sejam os morais que tantos suicídios já causaram, mas principalmente os físicos, presenciais, vorazes além da conta em sua destrutividade, se multiplicam aqui e em outros países.

Por infeliz coincidência, mas não apenas isso, a exacerbação da malevolência e da fúria, da bestialidade desmedida e da repulsão injustificada ocorre quando a vida digital conquista marcos significativos, como no caso de aniversário de 10 anos de criação do aplicativo WhatsApp ocorrido em fevereiro último.

Também estamos vivendo neste 2019 o ciclo de 20 anos desde as primeiras experiências de autopublicação que possibilitaram o surgimento dos blogs, de onde evoluíram as ideias para disparadores de mensagens interativas do tipo Twitter.

Além disso, há o guarda-chuva histórico da Arpanet para todos os apelos possíveis à interatividade armado em 1969, há 50 anos, portanto, Arpanet que foi a primeira rede de computadores, laboratório em que se formularam os protocolos da Internet que usamos agora.

O admirável mundo novo mergulhou parcialmente no pesadelo da nova mentalidade conectada em tempo real descolada dos princípios éticos que favorecem a ideia de um humanismo prático em rede na pós-modernidade.

Há uma inconsciência das consequências da agressividade desmedida no âmbito da globalidade tecnológica que nos assiste. É como se em frente ao computador propondo o assassinato de nordestinos participássemos de um jogo virtual. E só. Psicologizando essa nova faceta moral da identidade contemporânea, recorremos ao fato, inúmeras vezes apontado neste espaço, de que a superexposição midiatizada mutila o ser em sua integralidade. E a área atingida é a da afetividade. Como é do conhecimento de todos, o afeto é para a psicologia uma das três funções mentais vitais, sendo as outras a volição e a cognição.

Desprovidos de empatia e afetividade estamos na praça digital conectada entregues à própria sorte. A sorte do ódio. Como sair desta armadilha? A resposta deve ser encontrada em cada um(a) de nós.