O carnaval de 2018 já entrou para a galeria dos mais politizados da história. Na esteira da condenação do ex-presidente Lula a mais de 12 anos de cadeia, e diante dos altos índices de impopularidade de Michel Temer, o que não falta na folia são manifestações contra a classe política, como um todo, e de figuras do Judiciário, como o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Com a tradicional irreverência do brasileiro, os protestos ganharam ruas, bailes e avenidas do samba, principalmente a Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro.

Mas foi o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB), que parece ter aceso o pavio da explosão do descontentamento popular. Dias depois de sua posse, no início de 2017, o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus anunciou, como uma das primeiras medidas de sua gestão, que cortaria repasses da prefeitura para as escolas de samba, algo que tradicionalmente era assegurado às agremiações. Foi o que bastou para que não só a turma do samba, mas o próprio setor de cultura do estado – e, em certa medida, do país -, colocasse o bloco da resistência em marcha.

Resultado: logo no primeiro dia de desfiles do grupo principal na Sapucaí, a Estação Primeira de Mangueira, uma das mais tradicionais e vitoriosas escolas de samba do país, mostrou a que veio com o enredo “Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco” – um recado claro, direto, a Crivella. Em um dos carros alegóricos, o próprio prefeito é retratado como um judas, ao lado de uma faixa com a frase “Prefeito, pecado é não brincar o carnaval”!

Encerrado o desfile, o presidente da escola de samba, Chiquinho da Mangueira, resumiu o mote concebido pelo carnavalesco Leandro Vieira e levado à avenida pela comunidade: “Foi a resposta para ele repensar o que fez com o carnaval. Cometeu a maior injustiça com a maior festa popular do mundo, que é o carnaval. A Mangueira se propôs a se rebelar contra isso tudo”. Nas arquibancadas, o grito de “fora, Crivella!”. Por meio de nota (íntegra abaixo), a Prefeitura do Rio de Janeiro se limitou a lamentar as críticas e falar em “falta de respeito e ofensa gratuita”.

Veja trecho dos protestos de foliões contra Crivella na Sapucaí:

“Manifestoches”

A irreverência aliada à indignação do carnavalesco não poupou Michel Temer, o primeiro presidente da República investigado por suspeita de crime no exercício do mandato em toda a história do Brasil. E a tarefa de criticá-lo coube à escola de samba Paraíso do Tuiuti, estreante no grupo de elite dos desfiles. Retratado como um vampiro “vampiro neoliberalista”, a imagem de Temer como patrocinador de políticas que favorecem o mercado financeiro constrangeu apresentadores da TV Globo (veja o vídeo e leia mais abaixo), que tem exclusividade na transmissão do show.

A escola adentrou a avenida neste domingo (11) e, em sua primeira participação junto com gigantes como Mangueira, Portela e Beija-Flor, trouxe ao grande público um forte discurso contra mazelas políticas e sociais. Com o samba “Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?”, a agremiação soltou o grito contra o racismo renitente na sociedade brasileira, com suas variadas formas de “escravidão” social – entre elas, as relações trabalhistas recentemente modificadas pelo governo Temer, com o auxílio providencial do Congresso.

Temer vira vampiro no desfile da Paraíso do Tuiuti

No encerramento do desfile, a Tuiuti destacou no alto de um carro um homem de terno e cabelos grisalhos portando a faixa presidencial. Com a denominação de “vampiro neoliberalista”, a alegoria fez uma clara alusão a Temer, em um carro onde viam “paneleiros” com camisas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

A crítica foi mais longe: a ala intitulada “Manifestoches” exibiu passistas fantasiados de patos amarelos, numa analogia aos protestos de rua que ganharam corpo em 2016 e, simbolizados com o pato amarelo gigante concebido pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), contribuíram para o impeachment de Dilma Rousseff.

Veja no vídeo:

Na referência mais clara ao neoliberalismo posto em campo pelo governo Temer, outra ala retratou o trabalho informal, em referência à reforma trabalhista que alterou, no ano passado, diversos pontos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – e, segundo críticos das mudanças, precarizaram as condições do trabalhador e desequilibraram, em favor dos patrões, a relação entre empregadores e empregados. Como este site mostrou à época da aprovação final da matéria, no Senado, 74% dos senadores que votaram a favor das alterações na legislação são empresários.

Nenhum dos apresentadores da TV Globo mencionou o nome de Temer diante da aparição da fantasia trajada pelo chefe do atelier da Tuiuti, Leo Morais. Do camarote onde são narrados os desfile e, ao final de cada um deles, entrevistadas personalidades, sambistas e carnavalescos, a jornalista Fátima Bernardes se limitou a dizer que a ala representava “o regime de exploração nos mais diversos níveis”. Antes, o apresentador Alex Escobar e o carnavalesco Milton Cunha manifestaram parcimônia ao comentar a crítica clara ao presidente.

Lula

Em um país polarizado à beira de um ataque de nervos, o ex-presidente Lula não passaria incólume pelo espírito zombeteiro do povo. Acusado de ter recebido propina disfarçada em um tríplex no Guarujá e um sítio em Atibaia, litoral e interior de São Paulo, respectivamente, o petista vez ou outra é “lembrado” nas ruas, principalmente em transmissões ao vivo da TV Globo e outras emissoras. Na última sexta-feira (9) pré-carnaval, em uma passagem no meio do carnaval de rua do Rio de Janeiro, um folião passou a gritar “Lula na cadeia” repetidamente, atrás de uma repórter pega de surpresa.

Mas é nas redes sociais e no mundo incontrolável da internet que o ex-presidente é alvo constante. Em um desses registros que viralizam em plataformas como Facebook e Twitter, além do quase onipresente WhatsApp, o petista é brindado com uma irônica canção de samba no melhor estilo carioca. No sambinha “Não é nada meu”, o cantor Neguinho da Beija-Flor, puxador de samba da escola multicampeã homônima, junta-se ao sambista Boca Nervosa para zombar da defesa resoluta de Lula a respeito de suas posses.

Veja a canção de “homenagem” a Lula:

Gilmar “habeas corpus” Mendes

Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes tem testado a paciência do povo brasileiro com os seguidos habeas corpus expedidos para tirar da cadeia figurões da política e do mundo empresarial. Como este site mostrou em 14 de janeiro, a indignação da sociedade foi expressa até em Portugal, onde duas brasileiras o flagraram em dolce far niente noturno e rasgaram o verbo em críticas ao magistrado.

Mas é durante a folia que a criatividade brasileira, misturada à revolta contra os desmandos do poder, faz-se mais vicejante. O juiz, que tem o hábito de se reunir com Temer fora da agenda oficial, ganhou uma das marchinhas mais comentadas deste carnaval. Autor de canções que embalam o povo desde a década de 1960, o compositor João Roberto Kelly caprichou na verve e fez uma bem humorada e ácida crítica à postura de Gilmar, visto como amigo de poderosos corruptos e sempre disposto a ajudá-lo com decisões polêmicas.

Na marchinha abaixo, a letra de “Alô, Alô, Gilmar”, lançada no início deste ano, é impagável. “Alô, alô, Gilmar / Eu tô em cana / Vem me soltar / Eu roubei, eu roubei, eu roubei / Não estou preso à toa / Mas no mundo não há quem escape / De uma conversinha boa”, diz a introdução da obra de João Roberto.

Veja no vídeo:

Pagodinho

Até o sambista Zeca Pagodinho, o mito de Xerém, viralizou e virou meme no carnaval 2018. Desta vez não por algum episódio relacionado à cervejinha que ele tanto venera, mas devido à polêmica de uma foto quase não tirada com o prefeito de São Paulo, o tucano João Doria.

A primeira versão que surgiu foi a de que Zeca, em um camarote na presença do político, recusou-se a tirar uma foto ao lado dele no camarote do Bar Brahma, no Sambódromo do Anhembi, em São Paulo. As imagens da reação do artista ao encontro com o prefeito caíram nas graças da internet. Ficou entre os assuntos mais lembrados pelo Twitter na manhã deste domingo (11). Usuários da rede satirizaram a situação, que virou meme.

Não é não: aparentemente, Zeca manifesta desconforto diante da abordagem de Doria

Segundo relatos, Zeca gesticulou com as mãos e fez sinal de negativo com a cabeça enquanto o prefeito se aproximava, vindo do camarote da prefeitura. Cabisbaixo, o cantor ouviu o prefeito, que insistia na foto. O caso só foi resolvido quando o dono do camarote interveio e pediu ao artista que posasse ao lado de Doria. Zeca Pagodinho disse que a recusa não era pessoal, mas não queria ser fotografado ao lado de político. Aceitou posar, mas pediu a presença do ex-jogador Amaral no meio.

Mas, depois de muito disse-me-disse e atuação das respectivas assessorias, o caso ganhou nova versão. Segundo a coluna de Mônica Bergamo, que testemunhou a cena in loco, o que aconteceu foi o contrário: amigos de Zeca queriam fazê-lo desistir do convite de João Doria para uma foto. “Eu estou na casa dele [sambódromo]. Vou na casa de uma pessoa e me nego a tirar uma foto com ela?”, disse o cantor à colunista, que informa ter presenciado a cena ao lado de Zeca (leia a íntegra).

Leia a nota da Prefeitura do Rio:

A Prefeitura lamenta a falta de respeito e a ofensa gratuita. E lembra que, apesar da grave crise econômica vivida pela Cidade do Rio de Janeiro no ano passado,  foram investidos quase R$ 80 milhões no carnaval. Só em recursos captados junto à iniciativa privada foram levantados R$ 38,5 milhões, o maior valor já captado. No caso das escolas do grupo especial, as agremiações receberam R$ 13 milhões da prefeitura, R$ 1 milhão para cada uma, mesmo valor que recebiam até 2015, sendo que naquele ano eram 12 escolas. Além disso, mais R$ 6,5 milhões foram obtidos com a iniciativa privada, totalizando R$ 19,5 milhões.”

A prefeitura também repassou R$ 10,5 milhões para que as escolas dos grupos de acesso e as escolas mirins preparassem seu carnaval. Além disso, obteve mais R$ 3,5 milhões, que possibilitaram a montagem da infraestrutura na Intendente Magalhães, onde há um espetáculo gratuito em que desfilam escolas de samba dos demais grupos que não saem na Marques de Sapucaí. A Prefeitura também abriu mão de taxas que sempre foram cobradas das escolas nos governos passados no valor de R$ 200 mil. Com muito esforço e criatividade, a Prefeitura investiu e se mobilizou para que o carnaval deste ano transcorra com organização, limpeza e segurança não só nos desfiles das escolas de samba, mas em toda a cidade.

Do Congresso em Foco