Sentimentos represados

Represar – transitivo direto

deter o curso de (corrente de água); empresar, estancar.

transitivo direto

fig. frear o ímpeto de; impedir de avançar; dominar, conter, refrear, reprimir.
“represar uma paixão”
“A esperança é uma grande falsificadora da verdade. A sensatez deve refreá-la, procurando que o gozo do real supere o desejo do imaginário”, Baltasar Gracián.
Ela viu o curso do tempo, da vida inteira, de todas as urgências do passado, do presente e de um tempo futurível tomando conta de seus sonhos. Cansada da pequenez de seu dia, dormiu tarde, mas ainda era cedo para o muito que ansiava.  Os sonhos eram como brisa, a gota de orvalho que embeleza melancolicamente a folha. O sono, terremoto, que a deixava em alerta para qualquer sinal de fumaça que pudesse aparecer madrugada afora.
As longas esperas e as fumaças de cigarro geradas pela saudade dele tornavam cada vez mais comum os “alertas falsos” dentro de seu quarto. Mas era quase 4h da manhã quando percebeu que o sinais não eram de nicotina.
A esperança de vê-lo, ainda que sonolenta, se concretizava numa notificação no celular. Ah, a tecnologia… tem o poder de aproximar àqueles distantes geograficamente, mas juntos no mesmo querer, desejo, ardência, sufocamento da saudade.
Foi a primeira hora que represou seus instintos para não assustar a expectativa de  vê-lo. para conter a ansiedade, preferiu dormir mais um pouco. Pura ilusão. Eram cochilos inquietos, que já alterava seu humor antes mesmo do nascer do Sol.
Eram 7h da manhã e mais uma vez ela escolheu represar dentro de si aquele turbilhão de emoções e sensações que insistia em tomar conta dela. Represou porque estava querendo por em prática o conselho de Baltasar Gracián, em seu A Arte da Prudência, de que só um tolo é quem alimenta expectativas e gerá-las é certeza de desilusão. Não. Ela queria se poupar de todo um dia imenso de trabalho pela frente, não poderia estar em frangalhos, sangrando para todos verem. Não mesmo.
8h. Faltava um pouquinho de nada para ela morar por toda aquela eternidade dentro do abraço dele, eternidade enquanto durava aquele encontro. A essa altura já tinha rasgado os ensinamentos de Gracián, já estava se aprontando, já estava de boca vermelha, já estava cantarolando Do I Wanna Know, do Arctic Monkeys, já estava, já estava, já estava, já…
Som de notificação. A mensagem era imagética, mostrava que até a natureza pode ser cruel e tornar seu dia nebuloso. Diante da inacreditável mensagem, entoou, numa versão somente sua, os versos de Drummond: “No meio do caminho tinha uma árvore / tinha uma árvore no meio do caminho / tinha uma árvore / no meio do caminho tinha uma árvore”. 
A tal mensagem, de tão poucos caracteres destruiu os sonhos cultivados para todo aquele dia. Ela negou para si que não, não tinha abalado-a, que já esperava, sempre acontecem imprevistos. Ah, a tecnologia… tem o poder de quebrar mais e mais os corações doídos de nostalgia.
Represar sentimentos numa certeza de que seria mais forte do que aquela dorzinha da hora da mensagem foi o que ela fez ao longo do dia. Estava até orgulhosa. Mas foi só o Sol se por que percebeu que foi nocauteada pela tristeza de não vê-lo. Precisava vê-lo, tinha que vê-lo.
E já eram oito da noite quando abriu as comportas da represa de lágrimas de todos os dias recentes de saudades. Represá-las seria um crime. As lágrimas, pura ingenuidade e franqueza, era símbolo do dia de represa que ela passou.
Quem é ela? Ela somos todas nós.
Das citações:
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Baltasar Gracián escreveu o livro “A arte da prudência” em 1647. Eis um trecho sobre expectativas:
“É comum ver que tudo aquilo que recebe muitos elogios antes de acontecer não alcançará depois o sucesso esperado. O real nunca pode alcançar o imaginado, porque imaginar a perfeição é fácil, mas atingi-la é muito difícil. O casamento da imaginação com o desejo sempre concebe as coisas muito melhores do que elas são. A excelência – por maior que seja – não é suficiente para satisfazer ideia inicial. Por isso, ao criar uma expectativa exorbitante, causasse mais decepção que admiração. A esperança é uma grande falsificadora da verdade. A sensatez deve refreá-la, procurando que o gozo do real supere o desejo do imaginário. Os inícios honrados servem para despertar a curiosidade e não para comprometer a tentativa final. O resultado é melhor quando a realidade supera o que se pensou. Esta regra não vale para coisas ruins. Quando se exagera um mal e a realidade desmente a imaginação, o que a princípio parecia muito ruim chega a ser tolerável”.

Por Clara Luna