Em entrevista concedida em 2002 ao professor britânico Glyn Daly (publicada no livro “Arriscar o impossível”), o filósofo popstar Slavoj Zizek – que escreve livros com a mesma facilidade que aflui multidões aos auditórios de suas conferências -, teceu um belo e improvável elogio da filosofia de Kant, aparentemente (somente na aparência) surpreendente para um marxista de ideias revolucionárias e radicais. Conforme Zizek, embora o vocabulário idealista transcendental de Kant seja insuficiente e esteja superado (por favor, não confundir as categorias idealistas kantianas com metafísica, mas enveredar por esse caminho seria papo obscuro de filósofo), vivemos uma época histórica extremamente interessante porque “uma das principais consequências de avanços como a biogenética, a clonagem, a inteligência artificial (…) é que, talvez pela primeira vez na história da humanidade, temos uma situação em que os problemas filosóficos [especialmente os levantados por Kant, em forma e conteúdo] são agora problemas que dizem respeito a todos, que são amplamente discutidos pelo público.”
A frase citada quer dizer que os grandes dilemas éticos e filosóficos viraram o pão nosso de cada dia, abandonaram as nuvens do olimpo dos círculos elitistas de iniciados, adquiriram forma material e concreta, e, por isso, se transformaram em questões de emergência de multidões. O maior de todos os problemas filosóficos, até mais que os mencionados por Zizek, no passado e no presente, vem a ser exatamente a questão do fenômeno perene e universal, manifesto em todas as sociedades ou civilizações, das religiões. Pode-se e até se deve especular, num dia longínquo do futuro, a existência de uma civilização na qual a necessidade de fé, mística e transcendência seja transferida da religião para outra atividade (com isso sonharam Feuerbach e todos os filósofos ateístas).
Mas o fato é que essa sociedade ateísta dos filósofos não se vislumbra por uma longa duração histórica à frente, por um motivo simples. O principio do ateísmo – cujo prefixo grego “a”, significa ausência, afastamento, separação, trata-se de um princípio negativo, gerador uma de lacuna (ou ausência, certamente o vocábulo mais preciso) cuja substituição histórica ainda não foi posta de maneira positiva pelos homens em geral – apenas como exceção de vanguarda. Qual o princípio positivo e organizador a pôr no lugar de Deus? Apenas negar á existência, considerar-se ateu – Croce dizia algo assim “somos todos ateus do cristianismo”, uma frase da predileção de Gramsci -, já é um começo, porém, uma estratégia defensiva. A propósito, é insuficiente erigir a ciência no lugar religião, a exemplo do que faz certa literatura ateísta, até porque pode aí ressurgir, pelas portas dos fundos, um outro tipo de religião oculta – o cientismo. Quando se procurou dar forma ao cientismo – e foram exatamente os franceses – elas adquiriram formas bizarras, como o culto ao Ser Supremo de Robespierre ou a Religião da Humanidade de Comte. Sou ateu, e não duvido que chegue o dia da época na qual o princípio do ateísmo seja elaborado socialmente em registro positivo. O poeta diria: o dia ainda tarda.
Por tudo isso, fico espantando com a ignorância de certos clérigos e teólogos, quando, a guisa de explicação do ataque terrorista ao pasquim Charlie Hebdo, que completou um ano na semana passada, resumem a motivação daqueles homicídios à “questão social”. Quanta pobreza de pensamento! Como decaiu o nível da formação nos seminários! Embora “questão social” e “questão religiosa”, sem dúvida, componham um feixe complexo de casualidades, especialmente em nossos tempos de capitalismo quase inteiramente dominado pelo culto ao Deus-dinheiro, existe uma partícula da “questão religiosa” irremissível às conjunturas da “questão social”. Exatamente por ser partícula está-se no limiar de um núcleo duro. Por isso, é possível, em alguns casos, revolver a “questão social” agravando a “questão religiosa” – não falo especificamente a respeito da França nem da União Europeia, onde, quem sabe?, resolver a questão social desanuvie a questão religiosa.
Atenção, eventuais leitores incautos (às vezes acho que certos leitores deveriam ser tratados com os impropérios que Baudelaire dirige a eles no primeiro poema de “As flores do Mal”, em benefício de despertá-los do “sono dogmático”), evidentemente o fundamento de toda religião é social. Desconheço haver religião em Marte. No entanto, seria um erro grasso, que só pode denotar falta de treino intelectual, confundir as determinações genéricas da sociabilidade – Lukács diria: as terminações ontológicas – com as determinações da questão social, sempre situadas no tempo e no espaço (França, 07 de janeiro de 2015).
Subordinar sem as devidas mediações, desconhecendo a presença de um “pequeno objeto a” irredutível na relação “questão religiosa”/“questão social”, bem pensado, é a suprema, dogmática e preconceituosa forma de desrespeito ao Islã. Significa dizer que os “fundamentalistas são eles”, que cultuam uma espécie de “Deus inferior”, impossibilitados de alcançar as formas máximas de transcendência mística, sem que lhes escore a providencial âncora profana da “questão social”. Na verdade, querendo assumir ares de aparência politicamente correta, também podemos ser fundamentalistas. Esta é outra parte do problema.
Trato dela agora. Escritor de origem árabe-palestina formado nos Estados Unidos na melhor escola de interpretação literária de um mundo erudito em extinção na cultura ocidental – a escola humanista alemã de interpretação de textos de Erich Auerbach, Leo Spitzer e Robert Curtius -, o crítico literário Edward Said, autor de “Orientalismo”, um livro clássico para entender nós e eles, faz um afirmação desconsolada no prefácio à edição de 2003 do livro (época da ocupação militar de George W. Bush no Iraque e por triste coincidência ano de sua morte). Vale lembrar que o livro foi originalmente publicado em 1978; portanto, bem antes daquela guerra.
Para Said, a ciência política e a história praticada pela maioria de autores do mainstream norte-americano especializados em oriente, como Bernard Lewis e Fouad Ajami – eu acrescentaria a estratégia geopolítica do “choque de civilizações” de Samuel Huntington -, mercenários a soldo do departamento de Estado na tarefa de formar a “opinião pública”, nada mais revelam que uma perversão que a velocidade de nossa cultura, inclusive a universitária, impõe na interpretação dos fatos. Em lugar de uma silenciosa, demorada e empática penetração na cultura objeto de estudo- que incluiria no caso o estudo do árabe e do persa -, ou se possível, até a vivência direta, adota-se um método de recursos às fontes indiretas, em geral advindas da literatura colonialista inglesa e francesa do século XIX. Sucede assim que a literatura de hoje repete a pregressa, quando foi criado o espantalho perigoso e fantasioso chamado “oriente”.
Esse nosso “oriente” criado pelos intelectuais ajudou a criar uma contrapartida em termos de cultura popular que se tornou senso comum: o mundo muçulmano sempre foi misógino e perseguidor de mulheres e a religião de Alá não passa de um valhacouto de fanáticos. Perdeu-se por completo a percepção que as origens fundamentais das três religiões monoteístas (o judaísmo, o cristianismo e o Ilsã), em que pese às diferenças, são as mesmas. Ainda mais: perdeu-se o dado remoto que a própria ideia que a revelação de um Deus único por um profeta muitas vezes deu asas à criação de nichos fundamentalistas nas três religiões – ou seja, também podemos ser fundamentalistas.
Umas das predileções do nosso oriente ideológico é o uso e abuso do anacronismo histórico. Já li de tudo. O mais raso deles localiza a origem do conflito contemporâneo, em pleno século XXI, nas guerras médicas de gregos e persas (século V a.C). Como assim, se naquele tempo não havia “ocidente”, “oriente” e ainda estava distante séculos de acontecer a ascensão das tradições monoteístas do cristianismo e do Islã, derruindo as tradições dos deuses pagãos gregos e do zoroastrismo persa? Ao menos a ignorância é ecumênica, a sequência de anacronismos envolve tanto os defensores como os críticos da ideia de “choque de civilizações”.
Por favor, parem de confundir Jihad Islâmica com Nacionalismo Árabe, Baath com Al Qaeda, Bashar al-Assad com Estado Islâmico (Isis). Não perceberam que estão em guerra a Síria – um dos últimos Estados remanescentes, neste caso, pervertido, do projeto do nacionalismo autóctone – e o Califado Islâmico – relançando um projeto medievalista em pleno século XXI -, e exatamente por isso é impossível a essas correntes a formação de uma “frente única” contra as potências ocidentais? Parece o samba do crioulo doido – a expressão politicamente incorreta é do humorista Sérgio Porto (talvez hoje estivesse correndo risco de vida). Já vi fotos da revolução argelina de 1962 justificando Osama Bin Laden, gente dizendo que a dinastia Saud (Arábia Saudita) financia a Al-Qaeda, quando ele é um trânsfuga renegado da aristocracia saudita (aí é demais).
O maior de todos os equívocos, contudo, não acantonam nas metáforas cheias da graça involuntária de um samba do criolo doido. Mas na apreensão de conceitos e valores. Reside exatamente na crítica à existência de um pseudo vírus “etnocentrista” e imperialista na tradição do pensamento iluminista. Reprisando o bordão de Hannah Arendt em “Origens do totalitarismo”, os fundamentos remotos do imperialismo, do antissemitismo e do totalitarismo são o romantismo (na versão direitista e nacionalista), o pensamento conservador e a versão seletiva a que o darwinismo social de Francis Galton submeteu o pensamento do primo, Charles Darwin. Vasculhem a biblioteca de Cecil Rhodes (negocista imperialista britânico, racista) e verifiquem suas leituras prediletas. Lá não encontrarão Montaigne, Voltaire ou Rousseau, nem a “Bíblia” do colonizador era a “declaração dos direitos do homem”. Todas essas miragens do “etnocentrismo iluminista” são “produto de primário mal feito “ (parafraseando outro perigoso humorista, José Simão) que a formação universitária douta amplia em papers e seminários, até aportar nos posts das torcidas organizadas de internet.