Quando uma voz é silenciada numa democracia, todos perdemos

Segmentos da sociedade há algum tempo vêm cobrando imparcialidade dos profissionais da imprensa. Às vezes, fico a refletir se isso ocorre por desconhecimento ou é um argumento cínico para encobrir a má fé de quem fala e critica a imprensa a partir de uma posição, com uma ideologia e seus códigos apenas com o intuito de descredenciá-la de seu papel em plena democracia.

Na quinta-feira (4 de julho), a jornalista Verônica Guerra foi suspensa da bancada do programa radiofônico Balanço Geral da 98FM Correio, pela direção do Sistema Correio de Comunicação por dois dias. O motivo? Ter emitido opinião sobre a conduta dos policiais pernambucanos após a morte de oito suspeitos de diversos crimes, entre eles o de assalto e do assassinato de um policial. O que Verônica Guerra colocou em discussão no ar não foi a ação legítima da Polícia em matar suspeitos que, além de estarem armados, dispararam contra os agentes da Segurança Pública. A discussão foi sobre o espetáculo – grotesco – gerado com a exposição dos corpos.

Verônica questionou o desfile da PM pernambucana em carro aberto com os corpos como prêmio e depois a forma como os mesmos foram amontados. A ação policial resultou em aplausos por parte da população. Ou seja: Verônica criticou que agentes do estado tivessem ultrapassado a linha tênue entre o dever e a condição de carrascos em praça pública e foi punida por fazer o que qualquer jornalista teria o direito de fazer em seu exercício. Afinal, a função dela na bancada era a de opinar sobre os fatos do cotidiano na Paraíba. Diante da suspensão tratada como censura, a jornalista pediu demissão do cargo.

É exatamente aqui que queria chegar: os policiais criticados, e não a PM, são agentes do estado e sim, devem ser fiscalizados e sim, devem ser criticados e sim, devem agir de acordo com a Constituição e a Declaração Universal dos Direitos Humanos que tem pouco mais de 83 anos e o Brasil é signatário. Do contrário, já teríamos uma carnificina muito maior pelas periferias, baseadas apenas na vingança destes agentes.

O fato: A morte do policial ocorreu no dia 1º de julho, em Santa Cruz do Capibaribe, no Agreste pernambucano, e o confronto com a polícia, que acabou na morte dos oito suspeitos, ocorreu entre Barra de São Miguel e Riacho de Santo Antônio, na Paraíba). Após o confronto entre os suspeitos e policiais foi constatada a morte dos oito suspeitos de assalto a um policial. A PM desfilou pela cidade com os corpos na carroceria. Nas calçadas, fachadas e janelas das casas, a população assistia a tudo atentamente e aplaudia como se aquele fosse entretenimento. A violência vista nos programas de TV se tornou também em espetáculo ao vivo nas cidades. E esse não é um fato isolado quando se trata de revanche da Polícia Militar ao vingar a morte dos seus. Talvez, o problema tenha sido tocar nessa ferida.

Suspensão e gosto da censura

Quatro anos depois, a situação parece se repetir: policial é morto e a Polícia não só prende ou reage à ação dos bandidos. Ela se vinga ao expor os corpos como troféus. A motivação para a suspensão de Verônica teria sido uma nota enviada pela Associado Beneficente dos Policiais Militares da PB (que representa policiais fora de atividade) contra as críticas feitas por ela no ar.

Sinceramente, custo a crer que tenha sido só isso ou que a direção ouviu o programa – porque se tivesse ouvido não suspenderia uma profissional que eles contrataram para emitir opinião apenas por ter dado uma opinião respaldada, inclusive, pela Constituição Federal e por Termo de Ajustamento de Conduta já emitido tempos atrás pelo MPF proibindo a exibição de presos para o cardápio televisivo.

Ninguém é inocente que não saiba o combo que é contratar uma profissional como Verônica Guerra. Ela questiona, põe o dedo na ferida, questiona os fatos, os interpreta para o ouvinte leigo ou desatento, mesmo deixando claro que tem lado ou que as opiniões refletem uma tomada de posição. Nem sempre concordo com ela, como não concordo que tenha havido chacina, como ela defendeu. Houve um confronto entre policiais pernambucanos e oito civis armados. O termo chacina se apropriaria à ação de qualquer grupo que detém força, armamento e condições estratégicas de eliminar pessoas sem chance de defesa. Mas, discordar faz parte do jogo democrático.

Ironicamente, Verônica Guerra era uma das poucas mulheres como âncora no rádio paraibano com esse tipo de característica de debater, contextualizar e provocar discussões assim como Cláudia Carvalho e Rejane Negreiros (me desculpem se deixo de citar alguém relevante no segmento). A questão é: o caso serviu como uma luva para a suspensão.

É importante lembrar que a 98FM Correio que veicula o Balanço Geral integra o Sistema Correio de Comunicação, que, por sua vez, detém o poder de transmissão da TV Record na Paraíba. E a Record se mantém alinhada como uma dos principais porta-vozes do atual governo de Jair Bolsonaro, com uma gestão de viés armamentista, anti-políticas sociais, também contrário às pautas progressistas.

O jornalismo é fortemente marcado pela presença das mulheres, mas há algo que sempre me chamou atenção: jornalistas do sexo feminino raramente conseguem espaços em programas de opinião que mexem, invariavelmente, nos redutos do poder: violência, política partidária, crime organizado e temas polêmicos. Todas as vezes em que mulheres estiveram à frente de microfones se valendo de seu poder de comunicação para debater temas relevantes sem a defesa do justiçamento foram alvos de críticas e boicotes silenciosos. O mesmo não ocorre quando é feito por homens à frente dos microfones. Vale reforçar preconceitos, condenar vítimas, ironizar de causas sociais…e isso revela como há uma verdade e uma igualdade tão propagada por diversos veículos de comunicação. Isso não é um caso isolado, infelizmente.

Jornalista do Paraíba Já na mira dos vereadores de Conde

No mês de junho, após fazer uma série original de reportagens sobre as Câmaras Municipais da Paraíba e mostrar possíveis distorções em algumas cidades, a editora do site Paraíba Já, Edilane Ferreira, passou a ser alvo não mais de críticas e sim de xingamentos nas redes sociais e sofreu intimidação de parlamentares que sugeriram que ela estaria à serviço do Poder Executivo. Um dos vereadores de Conde chegou a ameaçá-la de prestar um Boletim de Ocorrência (BO), transformando o fazer jornalístico em caso de polícia. É pela intimidação à imprensa e a qualquer pessoa que ouse expor críticas que o autoritarismo mostra sua face mais cruel.

Não seria papel do jornalismo fiscalizar, analisar e criticar o trabalho de policiais militares e de vereadores?

Não creio em desconhecimento, não. O que se tem é a ascensão do autoritarismo como base para pautas moralistas, conservadoras e pouco democráticas.

Quem tem plena certeza de que age e cumpre rigorosamente com suas atribuições, perseguindo o cumprimento da lei, em tese, não temeria ser observado e criticado. No máximo, pediria via judicial, como último recurso, um pedido de direito resposta por ter se sentido prejudicado.

Cortejo com exibição de corpos em 2015

Em junho de 2015, a Paraíba viu cena similar. Um policial militar foi vítima de latrocínio no dia 6 de junho e o final de semana foi de caçada com mais de 70 PMs mobilizados para prender o bando suspeito de assalto a um posto de gasolina em Patos, no Sertão da Paraíba.

O saldo foi dois homens mortos, dois adolescentes apreendidos e 3 outros suspeitos presos que foram colocados em carro aberto enquanto a PM desfilava pelas principais ruas da cidade. O comandante do BPM na época disse às emissoras de TV que a ação era uma resposta à sociedade e aos companheiros do batalhão.

Os dois casos se entrelaçam porque as vítimas eram policiais, o contingente de efetivo envolvido não foi nada comum, em torno de 70 a 80 profissionais, e pela linha tênue entre a obrigação de combater o crime prendendo os envolvidos e já os tendo imobilizados desfilar com eles em carro aberto. Partindo do princípio constitucional, polícia não julga. Ela prende! Quem julga é juiz.

Os envolvidos eram apontados como suspeitos porque não foram denunciados pelo Ministério Público (MP) e nem tampouco julgados pelo juiz. É uma resposta à sociedade, mas é também um passo fora da Constituição.

Tudo isso preocupa muito. Preocupa, em especial, porque devido à fragilização do Estado e suas instituições, a midiatização soa não como intermediador, mas o meio de resolutividade dos conflitos da vida política e cotidiana. Não basta mais a Justiça. A rua e a narrativa da rua julgada pelo público in loco, pelos telespectadores e âncoras seriam uma resposta à sociedade. O problema é que além de imoral, ilegal é um acinte à democracia.