Propagação da Covid-19 no Brasil foi intencional

O Brasil se aproxima dos 300 mil óbitos por Covid-19. É consenso entre os especialistas em saúde pública que a maioria destas mortes poderia ter sido evitada. Não se trata de erro nem omissão do governo federal. Existe uma estratégia de propagação da Covid-19 no Brasil, implementada sob a liderança do presidente da República, como demonstramos em estudo publicado em janeiro de 2021, resultado de investigação do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA) da USP, em parceria com a Conectas Direitos Humanos.

A partir de abril de 2020, o governo federal passou a promover a imunidade coletiva por contágio como meio de resposta à pandemia. Ou seja, optou por favorecer a livre circulação do novo coronavírus, sob o pretexto de que ela naturalmente induziria à imunidade dos indivíduos, e de que a redução da atividade econômica causaria prejuízo maior do que as mortes e sequelas causadas pela doença.

A estratégia federal é composta de três eixos. Primeiro, a propaganda contra a saúde pública, por meio de gestos, como a contínua promoção de aglomerações, e do discurso do governo federal. Não se trata de bravata, e sim de um plano de comunicação, que mobiliza argumentos econômicos e ideológicos, notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica. O seu propósito é desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular às recomendações baseadas em evidências científicas, e promover o ativismo político contra as medidas de contenção da Covid-19. A incitação ao contágio baseia-se na falsa crença de que existe um tratamento precoce para a doença, agravada pela constante banalização do sofrimento e da morte.

O segundo eixo é o combate às iniciativas de governadores e prefeitos que buscam conter a propagação do vírus, que o próprio presidente já definiu como “guerra”. Houve atraso sistemático no repasse de recursos, tentativa de confisco de insumos de saúde adquiridos por estados e municípios, e atraso proposital no encaminhamento da vacinação. O presidente chegou a propor ao STF uma ação contra as medidas de contenção da doença adotadas por governadores.

Por fim, há intensa atuação normativa, incluindo decretos que define como “essencial” uma ampla gama de atividades durante a pandemia, e vetos às principais leis que visaram conter a disseminação do vírus, como as relativas à obrigatoriedade do uso de máscaras e à proteção dos indígenas.

O estudo foi destacado por prestigiosas publicações internacionais como o BMJ Opinion. Teve repercussão nacional, fundamentando uma representação criminal contra o presidente da República por crimes comuns, inclusive contra a saúde pública; e pedidos de impeachment por crimes de responsabilidade, como o de um grupo de professores da Faculdade de Direito da USP.

Por outro lado, a repercussão do uso do termo genocídio pelo influenciador Felipe Neto deu notoriedade a um debate que já existia: a eventual prática de crimes internacionais. É um dever da comunidade jurídica brasileira discutir o caso brasileiro à luz do direito penal internacional, especialmente no que tange ao genocídio de populações indígenas, potencialmente agravado durante a pandemia, e aos crimes contra a humanidade.

Interpretações leigas em saúde pública, aliadas a uma concepção conservadora sobre o papel da justiça internacional, têm estigmatizado e boicotado o avanço deste debate.

A jurisprudência penal internacional já reconheceu que pode ser considerado um ataque à população civil o exercício de pressões públicas para levá-la a agir de determinada maneira, desde que promovido de forma massiva e sistemática, segundo um plano preconcebido que mobiliza meios públicos e privados consideráveis. É preciso que o Estado e a sociedade brasileira compreendam o que está em jogo: se ficar impune a escolha da imunidade coletiva por contágio, que tem causado a morte evitável de centenas de milhares de pessoas, futuros governantes nela encontrarão um extraordinário meio de extermínio de populações vulneráveis por intermédio da saúde pública.

Deisy Ventura é doutora em direito internacional da Universidade de Paris 1, Panthéon Sorbonne, e professora titular da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Fernando Aith é diretor do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (CEPEDISA) e professor titular da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Rossana Reis é professora do Departamento de Ciência Política da USP.

Da Folha de S.Paulo