Programa Nacional de Imunizações está há quatro meses sem comando

Falta de titular não ocorre apenas durante a pandemia, mas em um momento de queda das coberturas vacinais no país ao nível da década de 1980

Criado quase meio século para expandir o acesso à vacinação no Brasil, o PNI (Programa Nacional de Imunizações), do Ministério da Saúde, está há praticamente quatro meses sem chefia. O vácuo de comando no órgão, que não tem um titular desde o dia 7 de julho, não ocorre apenas durante a pandemia de covid-19, mas em um momento de queda das coberturas vacinais no país ao nível da década de 1980.

Especialistas ouvidos pelo UOL consideram que a demora em nomear um novo coordenador mostra falta de preocupação do governo e que é urgente resolver o problema.

Como taxas de vacinação de doenças como meningite, hepatite B e paralisia infantil, que foram próximas de 100% até 2015, caíram para menos de 80% no ano passado. Para os infectologistas, o risco de realização de doenças é real.

“Eu não tenho muita dúvida de que esse desmoralizante na nomeação atrapalha, porque você vê que isso não é prioridade para as autoridades. Se fosse prioridade, a pessoa sairia da carga no dia e já se começou a buscar novos nomes. A gente não vê isso”, afirma Rosana Richtmann, coordenadora do Comitê de Imunizações da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia).

A última titular do PNI, a servidora Francieli Fantinato, estava na função desde outubro de 2019. Em julho passado, no entanto, ela decidiu deixar a carga devido à politização em torno das vacinas. Fantinato falou sobre sua saída em depoimento à CPI da Covid, ocasião em que afirmou aos senadores que viu falhas do governo na campanha de imunização contra Covid-19.

Com a saída dela, o cargo foi ocupado provisoriamente por uma assessora técnica. Só depois de três meses, no dia 6 de outubro, um novo coordenador foi nomeado: era o pediatra Ricardo Queiroz Gurgel, professor da UFS (Universidade Federal de Sergipe).

Gurgel, porém, jamais tomou posse. Após semanas de espera sem um contato do ministério, ele foi por conta própria a Brasília e descobriu que não assumiria mais a função.

“Cheguei ao ministério e fiquei esperando a chegada do secretário [de vigilância e saúde, Arnaldo Correia de Medeiros]. Mas disse que ele estava afastado, por motivo de saúde, e veio um substituto. E essa pessoa que o substituiu me comunicou que não ter posse. Mas não disse o motivo”, contou Gurgel.

Para aparecer no DOU (Diário Oficial da União) como novo coordenador do PNI, Gurgel precisou ser cedido ao ministério pela UFS. Como a nomeação não foi revogada, o pediatra também não conseguiu reassumir seu posto na universidade até o momento. O UOL perguntou ao ministério a razão do recuo, mas a pasta se recusou a esclarecer.

“O corpo técnico do PNI é muito bom. São pessoas dedicadas, que trabalham há muitos anos, e o nosso programa é consolidado e conceituado. Mas essa insegurança, por todo esse tempo sem comando, deve atrapalhar, sem dúvida”, diz Gurgel.

“Qualquer programa de saúde, em qualquer país no mundo, fica difícil de ser seguido sem coordenação e orientações centralizadas. É urgente, já passou da hora de a gente ter um coordenador”, cobra o infectologista Renato Kfouri, presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações).

Além de não esclarecer os motivos do rompimento com Gurgel, o ministério também não informou quando pretende nomear um novo titular. Em nota enviada ao UOL, a pasta informou que apenas uma servidora de carreira, Greice Ikeda, tem atuado como coordenadora substituta.

Motivos da queda

O Ministério da Saúde anunciou, no dia 29 de outubro, a prorrogação da campanha nacional de multivacinação, voltada para crianças e adolescentes até 15 anos. Na cerimônia de lançamento, o então ministro interino, Rodrigo Cruz, falou sobre a importância da imunização, chorou e ganhou um abraço do Zé Gotinha.

A adesão à campanha, porém, ficou abaixo do esperado, e a mobilização acabou estendida até a final de novembro. Para os especialistas, a necessidade de prorrogação dos trabalhos é fruto de um dos principais fatores que, segundo eles, tem prejudicado a cobertura vacinal no país: a falta de comunicação.

“A comunicação com a população é muito ruim. Nós acabamos de ter uma campanha de multivacinação e ninguém soube disso. Esta comunicação, que tem ocorrido com tudo o que envolve um covid, eu não vejo nem de perto um esforço semelhante sobre os riscos das outras doenças”, afirma Rosana Richtmann, que representa a SBI na câmara técnica de imunização do ministério.

Até mesmo a covid, porém, sofreu com deficiências na comunicação, segundo a antiga titular do PNI. No depoimento à CPI da Covid, Francieli Fantinato afirmou aos senadores que o início da imunização na pandemia foi prejudicado por falta de doses e de divulgação efetiva.

Os infectologistas destacam, contudo, outros fatores que podem ajudar a explicar os números. Um dos principais, segundo eles, é um possível descuido da população diante de doenças que eram temidas décadas atrás, mas que foram praticamente erradicadas.

“A situação do passado diferente, quando as pessoas convivem com essas doenças e viviam com medo do filho morrer de doenças gravíssimas. Mas o sucesso das vacinas inibiu essa cautela e provocou um relaxamento na busca pela vacinação”, explica Renato Kfouri, da SBIm.

“De certa forma, como vacinas são vítimas de seu próprio sucesso”, diz Richtmann. Para um infectologista, a erradicação de algumas doenças fez com que elas ficassem abstratas para a população. “Como é que uma mãe ou um pai vai ter a percepção de que seu filho está sob o risco de uma doença chamada difteria, por exemplo? Eu nunca vi um caso de difteria, por que eu vou vacinar meu filho?”

Os infectologistas alertam que o Brasil precisa agir rápido para reverter o quadro de cobertura vacinal. Caso contrário, outras doenças poderão seguir o rumo do sarampo, que registrou surtos nos últimos anos e levou o Brasil a perder, em 2019, o certificado de território livre do vírus.

“O sarampo foi o primeiro a dar as caras porque é o mais transmissível. Então, quando você vê um cenário de baixa cobertura de todas as vacinas, a primeira doença que aparece é o sarampo, que se transmite muito mais fácil”, explica Kfouri. “Mas aí tem difteria, pólio, coqueluche, meningite. São todas doenças também factíveis de aumento de casos em função da baixa cobertura.”

“Só espero que a gente não precise ter uma catástrofe, como um surto de meningite, que é uma doença extremamente grave. Torço para que não precisa chegar a esse ponto para que a população volte a confiar na imunização e veja que é importante”, conclui Richtmann.

Do UOL