Posse dos prefeitos abre caixa de pandora das maldades deixadas por ex-gestores

A posse dos novos prefeitos e prefeitas dá visibilidade às consequências nefastas de um ciclo de destrutividade do conceito, de abordagens e das práticas de políticas públicas em nosso e noutros Estados. Destrutividade decorrente de muita desonestidade, imperícia, desconhecimento, assessoramento ineficaz e descompromisso.

Os exemplos são gritantes. Salários atrasados, equipamentos sucateados, recursos desviados… Houve quem roubasse a merenda escolar, gestores dispensaram médicos e odontólogos, as folhas de pagamentos foram roídas pelos gafanhotos da improbidade… Um cansativo ciclo que se não está com os dias contados, ao menos sofre a ameaça dos ataques que a cultura da corrupção e do patrimonialismo sofre, mas enfrenta com o cinismo de sempre.

Quem não viu ou não soube da arrogância com que Renan Calheiros enfrentou um ministro do STF que ameaçou retirá-lo da presidência do Senado? A corrupção engalanada frevou na lage da impunidade. Foi trágico e cômico.

Há responsáveis por isso? Acredito que as múltiplas tradições autoritárias da nossa cultura entrelaçadas com o burocratismo da modernidade resultaram no estado de coisas que degringolaram em processos, para muitos pura invencionice, do tipo petrolão e mensalão. Tais processos abrigaram um agrupamento político de inúmeras fontes partidárias estruturado nos moldes das quadrilhas mafiosas.

Uma arapuca para capturar o dinheiro público destinado à vida pública e não aos que boiam na privada. Obviamente que quando falo em modernidade estou usando uma referência histórica mais confortável e próxima quanto à abundância de exemplos e de informações sobre imoralidades que são aberrações. Mas estou consciente de que, ao longo da história, a corrupção se espraia desde quando as pessoas compreenderam a necessidade de estarem juntas para prover os indivíduos de uma segurança mínima, e com um acúmulo necessário de alimentos para garantir a sobrevivência e a eficiência produtiva de um clã.

Não foi Santo Agostinho o primeiro a tratar a corrupção como um problema moral capaz de contaminar todo o processo político? Sempre que discuto o tema aqui e alhures uso o exemplo de Agostinho de Hipona em seu magistral “A Cidade de Deus”.

A queda moral, a rejeição do bem, a ruptura com um ideal típicos da efervescência do platonismo sempre atual em sua perspectiva de vitalizar a ideia do bem são temas preferenciais do santo que dizia: “Com a corrupção morre o corpo, com a impiedade morre a alma”.

Corpo e alma do eleitor morrem um pouco a cada golpe que a corrupção impõe à consciência democrática contemporânea.

Outro pensador, F. Pereira Nóbrega, também abominava a corrupção a qual ele considera um tipo de impiedade.

Impiedade enquanto injustiça e desrespeito a leis espirituais de propiciação à vida ética. Karl Marx escreveu em “A luta de classes na França” que “As enormes quantias de dinheiro que passavam pelas mãos do Estado davam oportunidade para fraudulentos contratos de fornecimento, corrupção, subornos, malversações e ladroeiras de todo gênero. A pilhagem do Estado pelos financistas refletia-se nas obras públicas, nas relações entre os organismos da administração e os diversos fornecedores”. Corrupção, mal que vem de longe, mal que quer se perpetuar.

Mas insisto num bordão: a coisa vai mudar, terá que mudar. Há uma compreensão bem maior entre nós agora. Por todo lado, entre todas as gerações, há maior frequência na rejeição indignada às trapaças contra a vida republicana.

Há uma tendência que insiste em responsabilizar o eleitor. Resta lembrar que há uma afirmação institucional permanente de que o cerne, o alpha e o omega da vida política cidadã, é o momento do voto. E isso é capaz de criar uma falsa visão do processo, a de que aquele momento é descolado do resto do tempo que usamos para viver.

A insurgência popular que se manifestou de forma tão incisiva nas ruas, no entanto, aponta para uma nova expectativa diante da democracia direta. As redes sociais favoreceram uma desinibição quase sempre nociva quanto à propagação do ódio que possibilitam, mas positiva no que diz respeito ao ímpeto crítico participativo.

Por enquanto, desse ímpeto estamos usando o joio para fazer a bolacha e jogando o trigo fora. Ao mesmo tempo, há um empoderamento de setores da população que dificilmente se mobilizariam contra o status quo não fosse justamente a corrupção e suas consequências, repito, nefastas: reprodução da imoralidade, quedas ética, escolhas pelo supérfluo, violência, assédio moral, deturpação do papel da política, manipulação das agências estatais contra a legalidade, alienação e depredação das políticas públicas.

A posse dos prefeitos abriu a caixa de Pandora das maldades clássicas contra a sociedade. Sociedade que se manifesta cada vez mais contra a corrupção.