Paraibana está sendo alvo de xenofobia no BBB? Especialistas explicam

Mesmo sem assistir à vigésima primeira edição do Big Brother Brasil, você, de alguma forma, deve estar por dentro dos principais acontecimentos do reality que começou no último dia 25 de janeiro. Uma passadinha pelo Twitter já pode te informar das discussões que essa nova edição do programa está gerando. Uma delas coloca a participante Juliette Freire no centro da questão.

Na última terça-feira (2), a paraibana chamou seus colegas de confinamento para uma conversa séria. “Na verdade, ninguém quer me escutar. A pessoa está com medo porque eu sou diferente. Eu moro no Nordeste”, expressou Juliette na ocasião. Ela tentava dizer que se sentia excluída na casa e que percebia alguns colegas imitando e ridicularizando seu sotaque. Para a internet, o que Juliette queria dizer é que estava sofrendo xenofobia.

Afinal, o que é xenofobia?

Ainda no papo com os brothers e sisters, Julitte disse que as pessoas ali estavam tirando onda de seu sotaque e a imitando. Os colegas, indignados, disseram nunca ter tomado conhecimento disso e que a acusação era bastante séria. Diante da negação, não faltaram vídeos recuperados por fãs do programa, como o que mostra a cantora Karol Conká dizendo que “Lá na terra dessa pessoa é normal falar assim. Eu sou de Curitiba que é uma cidade muito reservadinha. Por mais que eu seja artista e rode o mundo, tenho os meus costumes, eu tenho muita educação para falar, não falo pegando nas pessoas “, disse a rapper fazendo referência a Juliette e seu estado, a Paraíba.

Mas será que comentários como esse podem ser considerados xenofobia? “Xenofobia é o medo ou rejeição ao estrangeiro, embora esteja sendo comumente usado para falar de toda forma de preconceito em relação a lugar de nascimento”, explica Durval Muniz de Albuquerque Júnior, professor do departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autor do livro A invenção do nordeste e outras artes.

Eu falaria mais em preconceito do que xenofobia. Ridicularizar o sotaque do outro tem a ver com o preconceito porque o sotaque é uma das marcas identitárias mais difíceis de alguém omitir. À medida que você fala, você pode ser identificado por sua origem e se alguém considera que essa forma de falar te inferioriza, e isso te leva a ser ridicularizado, isso, evidentemente, caracteriza um preconceito

Durval Muniz de Albuquerque Júnior, professor e autor do livro A invenção do nordeste e outras artes

Esse preconceito regional contra o Nordeste não é novidade. Como Juliana Ferreira, que pesquisa as trajetórias de mulheres nordestinas pela Universidade de São Paulo (USP), aponta: “Juliette não levou o preconceito para o BBB. Ela não foi discriminada por sua culpa”. O preconceito regional contra o Nordeste tem origem nas migrações internas que aconteceram no Brasil particularmente a partir da segunda metade do século 20. “Esse é um processo imigratório muito intenso, um processo de urbanização muito acelerado e que moldou o Brasil moderno”, conta Paulo Fontes, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autor do livro Um Nordeste em São Paulo.

Juliette - Reprodução/Globoplay - Reprodução/Globoplay
Juliette chora no quarto cordel Imagem: Reprodução/Globoplay

Muitos migrantes nordestinos, oriundos do trabalho rural, rumaram para o Sudeste para trabalhar nas indústrias, no setor de serviços, na construção civil e no trabalho doméstico, no caso das mulheres. “Essa articulação entre imigrantes nordestinos e o trabalho braçal me parece um dado chave para entender essa questão do preconceito e da xenofobia”, explica Fontes. “O nordestino está associado à ocupação de posições inferiores no mercado de trabalho, está associado à pobreza, à miséria e com todo imaginário em torno da seca e do retirante. E claro, também está associado, inclusive, à indigência do ponto de vista intelectual, como, por exemplo, aquele que usa mal a língua portuguesa, que fala errado”, completa Muniz.

Há outra dimensão, segundo Muniz e Fontes, que explica esse preconceito: a racialização dos migrantes. Boa parte dos nordestinos que foram trabalhar no Sul e no Sudeste do Brasil era composta por não brancos. As duas regiões, por outro lado, entre os séculos 19 e 20, receberam uma massa significativa de imigrantes vindos da Europa. Assim, sua população era, em sua maioria, branca. “Muitas pessoas do Sul têm identidade europeia e por serem brancas têm um enorme preconceito em relação aos próprios brasileiros”, comenta Muniz.

Essas denominações preconceituosas articulam esse conjunto de preconceitos, que são preconceitos de origem, mas que articulam preconceitos de classe e de raça.

Paulo Fontes, professor do Instituto de História da UFRJ, autor do livro Um Nordeste em São Paulo

E os outros nordestinos do BBB?

Juliette não é a única representante do Nordeste nesta edição do Big Brother. Gilberto é pernambucano, Lumena é baiana e a já eliminada Kerline é do Ceará. Com tantos participantes do Nordeste, então, por que só Juliette sentiu os efeitos do preconceito regional? “Veja, existem vários Nordestes. Eu, Juliana, do interior da Bahia, e a Lumena, que é de Salvador, por exemplo, temos origens e sotaques diferentes”, explica a pesquisadora Juliana Ferreira. Essa multiplicidade pode ter feito com que os outros participantes, também do Nordeste, não tenham percebido a discriminação direcionada a Juliette.

O preconceito pesa sobre todas as pessoas, porque ele não é sobre alguém isoladamente, mas sobre componentes sociais que definem sua identidade cultural, que pode ser a região de origem, religião, gênero, sexualidade, poder econômico, etnia.

Juliana Ferreira, pesquisa mulheres nordestinas no programa de pós-graduação da Universidade de São Paulo-USP

Além disso, há outros fatores que tornam o preconceito regional, principalmente em relação ao Nordeste, mais “aceitável” socialmente do que outras formas de discriminação. Muniz e Ferreira levantam a questão das representações midiáticas. O fato de boa parte dos órgãos de mídia estarem localizados nas regiões Sul e Sudeste faz com que o sotaque dessas regiões seja visto como “normal” enquanto o de outras regiões passa a ser o “diferente”. Assim, pontua Ferreira, “os ouvintes normalizam esses preconceitos e essa exclusão”. “As pessoas não conseguem identificar a xenofobia porque o padrão está tão enraizado na sociedade que as pessoas percebem como uma regra”, completa.

No Nordeste não tem só uma forma de falar, não tem só um sotaque, não tem só um dialeto. Há inclusive, dentro do próprio Nordeste, quem expresse preconceito ou alguma forma de rejeição a outras formas de falar que existem no interior da própria região.

Durval Muniz de Albuquerque Júnior, professor e autor do livro A invenção do nordeste e outras artes

Todas as pautas sociais do BBB

Se tem uma bandeira que essa edição do programa tem levantado, essa bandeira é a antirracista. Devido ao perfil militante dos participantes, em menos de um mês de reality, os temas raciais já foram discutidos em inúmeras ocasiões, muito mais do que em outras edições. A própria Karol Conká, que, apesar de não perceber os traços de preconceitos regionais em algumas de suas falas, milita em relação a causas raciais dentro do BBB, causas essas que, como já foi colocado, também são um fator para a discriminação de nordestinos por parte dos brasileiros. Então, como lidar com esse paradoxo?

“As pessoas falam muito em lugar de fala, mas a própria Djamila Ribeiro, que foi a pensadora que tornou público esse conceito, fala que é preciso sair do seu lugar de privilégio. No caso da Karol, ela parece acreditar que está no lugar de privilégio, por não ter origem nordestina. Ela mesma se coloca dessa maneira quando fala que a educação que teve foi em Curitiba. Ela deveria sair deste lugar ou utilizar esse lugar de fala para admitir que existe uma estrutura problemática que a coloca nesse espaço de superioridade em relação a Juliette”, explica Juliana Ferreira.

Para além, então, de entender o que motiva as ofensas sofridas por Juliette no BBB podemos pensar, também, em como reverter essa situação. Dentro do programa, a paraibana tem tentado conversar com os participantes para que eles entendam mais o seu jeito de falar e seus costumes. Aqui fora, os administradores de suas contas nas redes sociais criaram uma série de vídeos que buscam explicar, de forma criativa, expressões da Paraíba usadas por Juliette no programa.

Ex-participantes como a potiguar Irina Cordeiro e a também paraibana Flay deram apoio para Juliette e compartilharam situações semelhantes que passaram na competição. “Sejam bem-vindos ao NOVO NORDESTE. De Juliettes, de Irinas, de Jaqueline Goes de Jesus, de Durval Muniz, de Kleber Mendonça Filho, de Marta Vieira da Silva, da intelectualidade, da ciência, da cultura, da gastronomia, do acolhimento e da pluralidade. E nem vem nós por em suas caixinhas que já não cabemos mais”, escreveu Irina para Universa.

Ano Passado POUCOS aqui fora levantaram a voz pra desmascarar a xenofobia velada comigo e eu tive pouco apoio, foram os pinguinhos se matando por mim e poucos que tinham coragem, Esse ano estou aqui fora, e estou vendo como tudo funciona, eu NÃO VOU FICAR CALADA diante disso!

— FLAY | Ouça #DoisVagabundos (@flaayoficial) January 29, 2021

Segundo Juliana Ferreira, fora da realidade do reality, o que podemos fazer é investir em educação. “A educação esteve presente em diferentes épocas da vida dos seres humanos, em que realizavam a ação de troca de conhecimento por gerações, o espaço escolar é o local para diminuir preconceitos e discriminações”, comenta.

Vale ressaltar que qualquer tipo de preconceito pode, desde que seja injurioso, ser enquadrado como crime de injúria, como aponta o Código Penal brasileiro no artigo 140. O professor Durval Muniz lembra que, por ser bastante praticado e aceitável, a injúria por origem sofre pouca judicialização, mas é importante lembrar que, de acordo com a lei, injúria por origem é crime.

Estamos evoluindo. Hoje, eu posso ser protagonista da minha história através da minha tese de doutorado sobre mulheres nordestinas e posso descrever como realmente é o Nordeste e não aquele Nordeste que é visto cheio de estereótipos.

Juliana Ferreira, que está escrevendo um doutorado intitulado Trajetórias de mulheres nordestinas na pós-graduação stricto sensu na Universidade de São Paulo-USP

Do UOL