Paraíba é destaque nacional por plantio de maconha para fins medicinais

A Folha de São Paulo publicou, na manhã deste domingo (29) uma matéria onde destaca a importância da associação Abrace Esperança, localizada em João Pessoa. A Abrace é a única associação de pacientes do país que tem autorização judicial para cultivo da maconha para fins medicinais.

Confira

Muros altos, cercas elétricas, câmeras de vigilância, identificação por biometria. Quem circula pelo bairro dos Ipês, zona norte de João Pessoa (PB), não imagina que por ali são outras as flores que levaram a cidade a assumir um protagonismo impensável no país.

Em um sobrado branco, 2.458 plantas de maconha crescem em estufas e depois suas flores se transformam em óleos, sprays e pomadas à base de dois tipos de canabinoides: o THC (tetrahidrocanabinol) e o CBD (Canabidiol).

O ambiente é controlado pela Abrace Esperança, a única associação de pacientes do país que tem autorização judicial para cultivo da maconha para fins medicinais. Os produtos são dispensados sob prescrição de 210 médicos no país.

Em dois anos e meio, a associação viu o número de pacientes passar de 155 para 2.500. Eles pagam anuidades de R$ 350 e valores que variam de R$ 150 a R$ 200 pelo óleo —10% do valor dos importados.

A produção é contínua, mas não dá mais conta da crescente demanda. Há ao menos mil pessoas na fila de espera.

Segundo Cassiano Teixeira, diretor e fundador da Abrace, a meta é fornecer produtos à base de Cannabis para 10 mil pacientes até 2022, quando uma segunda unidade da associação, em Campina Grande, estiver funcionando.

A história da Abrace começou em 2014, a partir de uma demanda pessoal de Teixeira. A mãe dele, dona Zezé, 83, tem bronquiectasia, doença pulmonar que causa falta de ar e acúmulo de secreção.

Após uma internação em que ela “saiu pior do que entrou”, segundo Teixeira, ele resolveu tentar um tratamento alternativo: óleo de Cannabis.

Teixeira começou a fabricar ilegalmente o produto na cozinha de casa, depois de ler sobre o assunto na internet. “Comprei a planta do tráfico e fiz o óleo. Uma hora depois de dar, minha mãe já estava melhor, voltou a ter vida.”

Pelas redes sociais, conheceu um grupo de mães de crianças com epilepsia que lutavam para a importação do óleo de Cannabis e soube que também poderia ajudar o irmão, Ascendino, 55, que sofre das mesmas crises.

O preço do produto importado, porém, era proibitivo, e ele seguiu no cultivo ilegal, fornecendo o óleo também para um grupo de pacientes.

Em 2017, já constituída juridicamente e com 155 pacientes, a Abrace obteve liminar da Justiça Federal na Paraíba para o cultivo.

O processo tramita no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em Pernambuco, após a Anvisa ter entrado com recurso contra a liminar.

Em paralelo à Abrace, outra associação de pacientes de Paraíba, a Liga Canábica, obteve também em 2014, por via judicial, outro feito inédito: o direito de importar coletivamente o óleo de Cannabis sem autorização da Anvisa. “Não tínhamos sequer receita ou médico disposto a prescrever”, lembra Sheila Geriz, uma das fundadoras da Liga e mãe de Pedro, 10.

O menino começou a usar o óleo aos quatro anos para reduzir as 40 crises epiléticas diárias que tinha apesar de usar 16 medicamentos por dia.

Hoje, usando apenas o óleo de Cannabis, as crises se resumem a três ou quatro por mês, afirma Sheila. Aos oito anos, ele começou a andar. “É uma criança que passou a ter condições de viver com mais plenitude a infância dele.”

A partir do caso do filho, Sheila e o ex-marido Júlio Américo, que preside a Liga, passaram a militar em favor da Cannabis medicinal. Orientam famílias e defendem o plantio doméstico.

“Tudo o que vem ocorrendo na Paraíba é por decisão liminar da Justiça Federal, não por política pública de quem deveria regular isso, que é a Anvisa. O protagonismo é de duas associações, a Abrace e a Liga Canábica”, diz o procurador da República Jose Godoy Bezerra de Souza, 42, responsável pela ação vitoriosa.

Para ele, o fato desse pioneirismo ter partido de grupos de pais e não dos laboratórios farmacêuticos parece ter paralisado os órgãos técnicos governamentais. “É como se eles não estivessem preparados para lidar com outra realidade que não seja a das grandes farmacêuticas.”

Hoje, a cultura da Cannabis medicinal parece incorporada à sociedade paraibana. A capital já é chamada de “Califórnia brasileira”, em alusão ao estado norte-americano vanguardista no tratamento dado à maconha, legalizada para fins medicinais desde 1996.

Em João Pessoa, juízes, procuradores, políticos, empresários e artistas locais apoiam a causa. Discute-se a possibilidade de um laboratório estadual fabricar o óleo no futuro.

A partir de 2020, a UFPB (Universidade Federal da Paraíba) terá uma disciplina sobre Cannabis medicinal na grade dos cursos de medicina, biomedicina e farmácia.

Cada vez mais médicos prescrevem o óleo, até para casos clínicos que extrapolam a recomendação do CFM (Conselho Federal de Medicina), restrita à epilepsia refratária.

A clínica-geral Roberta Barbosa, de João Pessoa, prescreve o óleo para pacientes com câncer e doenças neurodegenerativas, como esclerose lateral amiotrófica e esclerose múltipla. “Já vem gente do Brasil todo, a procura é crescente. Hoje temos mais segurança na prescrição. Cada paciente tem a indicação adequada para o seu quadro clínico.”

Não que tenha sido fácil essa trajetória. Os funcionários da Abrace relatam que no início sofreram desconfiança de parentes e amigos e até batida policial. “Uma namorada terminou comigo porque não aceitava que eu trabalhasse com maconha”, conta Luciano Lima, gerente da Abrace.

A química da associação, Jéssica Freitas, diz que enfrentava olhos desconfiados dos colegas da faculdade. “O cheiro [da maconha] ficava impregnado na roupa e ficavam comentando. Mas não tem como trabalhar aqui e não se apaixonar pelas histórias dos pacientes.”

São histórias como a da enfermeira Talita Fereira, 38, e a filha Maria Clara, 3, que tem uma doença rara do sistema nervoso central que provoca tetraplegia, convulsões e retardo do desenvolvimento.

“Ela convulsionava o tempo todo, 50, 60 crises por dia, mesmo tomando três anticonvulsivantes. Fui eu que questionei a neurologista sobre usar a Cannabis. A médica do SUS não aceitou, mas a da [clínica] particular foi mais aberta e disse que gente podia tentar.”

A médica indicou um produto importado, mas Talita não teve condições de comprar. “Ia custar R$ 1.200 por mês.” Com a Abrace, o tratamento mensal, com dois tipos de óleo, sai por R$ 450.

“Com dois meses de uso, as convulsões começaram a diminuir. Agora são no máximo umas três por dia. Ela ficou mais atenta, acompanha a gente com o olhar.”

Luciana Paulino, 38, também aponta melhora do quadro de demência da mãe, Terezinha, 72, após 60 dias de uso dos óleos. “Ela estava totalmente dependente, só comia comida batida, não tomava banho sozinha. Voltou a comer comida sólida, toma banho, tudo sem ajuda. Mudou drasticamente.”

A Cannabis produz mais de 80 tipos de canabinoides. Os que têm propriedades medicinas mais conhecidas são o CBD (canabidiol) e o THC (tetrahidrocanabinol) Cânhamo (em inglês hemp). É uma planta alta e esguia, com poucas ramificações laterais. Tem alto teor de CBD, sem efeito psicoativo, e no máximo 0,3% THC, a substância que causa efeitos psicoativo. O caule e suas fibras são usadas na produção de papel, tecidos, cordas, entre outros. Nos EUA e no Canadá, o óleo de cânhamo é considerado um suplemento alimentar

Maconha

Tem baixa estatura, mais encorpada e com muitas flores —a parte da planta que apresenta níveis bastante elevados de THC. O caule e as fibras não são utilizados. Para maximizar os níveis de THC, ela é comumente cultivada em um ambiente fechado para que as condições como luz, temperatura e umidade possam ser controladas de perto

CBD

Crises epiléticas/convulsões
Autismo
Inflamações
Efeitos neuroprotetores
THC

Dor crônica
Espasticidade muscular
Náusea induzida por quimioterapia
Inflamações
* O CFM (Conselho Federal de Medicina) recomenda a prescrição apenas em casos de epilepsia grave, refratária a tratamentos convencionais. Fontes: Campanha Repense, associações de pacientes, estudos publicados. Informações da Folha de São Paulo.