Pai, afasta de mim esses bits!

A percepção que temos da violência precisa ser questionada, desconstruída e ressignificada porque enquanto ela atinge apenas os outros é cômoda. Até que um dia chega até nós… A violência não é apenas cardápio grotesco dos programas policiais que comercializam a violência, a barbárie, a dor das vítimas e o medo do internauta/telespectador diante de um corpo estendido no chão e entre uma chamada e outra para vender peças de cama, mesa e banho.

A violência e demais fenômenos sociais passaram a ser absorvidos na rotina até de quem não os registram, comentam ou compartilham, mas consomem, mesmo que numa visão mais passiva. E há os que filmam, comentam e disseminam registros e discursos de violência e ódio, trazendo para si um protagonismo. Os novos intermediadores de uma comunicação pouco vertical e mais pulverizada desnorteiam as concepções ortodoxas de comunicação nos meios de massa e que ora afrontam à Constituição Federal, chamada também de Constituição Cidadã, ora nos fazem perceber a cidadania digital a pleno “vapor dos bits”.

O que chama a atenção nas narrativas criadas por internautas, em suas redes sociais, especificamente, sobre a violência infanto-juvenil, é a associação desse fenômeno social à falta de Deus, ausência dos pais (embora sempre se questione onde estava a mãe e não o pai) ou a um ambiente desestruturado. Não se pensa que criança e adolescente também podem gerir a maldade. E quando são jogados a nossa frente casos de violência praticados por indivíduos da classe média alta, em espaços distantes do espectro da pobreza e desordem familiar e estrutural, choca. Choca porque associamos a violência à pobreza. Choca porque associamos a violência a um tipo específico de infrator das leis numa tríade: preto, pobre e favelado.

O choque mais recente na aldeia da Paraíba foi a notícia de que quatro adolescentes, com idades que variam de 13 a 17 anos, então alunos matriculados do colégio Geo-Tambaú teriam abusado e estuprado sistematicamente de uma criança. Os pais de alunos matriculados no estabelecimento ficaram em choque; os internautas se dividiram entre o pavor, o justiçamento e a crítica à imprensa – por não exibir os rostos e nomes dos envolvidos. Outros atacaram o Colégio Geo-Tambaú como “espaço de horror”. A instituição ao ser provocada pela imprensa informou em nota que tomou medidas de orientação e segurança para que episódios dessa natureza não se repitam na instituição.

Acostumados a receber ampla cobertura dos veículos, esse mesmo público quer os detalhes dos casos envolvendo os demais crimes em que os envolvidos não são os habituais dos programas policiais. Mas, diferente da cobertura ampla e sem rigores com identificação, exposição e detalhes das vítimas e suspeitos, a mídia age, nesse e em outros casos, com cautela e isso reflete a diferença de tratamento em função da cor, status social, poder aquisitivo ou influência familiar.

Pretos e pobres estariam no lugar social histórico adequado da violência, selvageria e crimes? Segundo o Atlas da Violência 2018, em levantamento feito entre 2006 e 2016 as taxas de homicídios entre a população negra saltou 23,1%, enquanto a taxa de não negros sofreu um recuo de 6,8%. Estatísticas que se configuram cotidianamente em reportagens, comentários nos meios de comunicação e nas redes sociais com uma avalanche de compartilhamento de vídeos e fotos de corpos crivados de baladas, estropiados ou em decomposição como cardápio principal para os programas policiais. As pessoas acreditam que isso faz parte de sua luta por justiça ou isso seria apenas um justiçamento histérico potencializado pelo imediatismo das redes sociais, da velocidade cada vez mais rápida com que se consume informação e a praticidade de uso de dispositivos eletrônicos que permitem capturar áudios, vídeos, documentos e compartilhá-los sem a menor reflexão do quão ético ou não seriam tais práticas?

Justiçamento na internet – O caso serve para reflexão sobre várias óticas, mas, sobretudo, quanto à forma como lidamos com a maldade, a violência e a ética humana nas redes sociais. Hannah Arendt se estivesse viva diante dos envolvidos e dos que se indignam cobrando justiçamento diria: o mal é banal. Há muita gente indignada cobrando uma justiça que não envolve internação, mas sim a violência como moeda de troca. Selecionei alguns comentários abaixo das notícias que comprovam isso: “O Brasil inteiro já sabe o nome de 4 desses vagabundos, fotos deles, áudios de depoimentos rolam no whatsapp… uma coisa é certa, vão virar bonecas na jaula do lobo mal (sic)…”.

A indignação aciona o desejo por parte dos internautas que os jovens sejam estuprados na unidade de internação. A expressão “virar bonecas” significa o estupro “socialmente aceitável” como castigo em presídios, unidades de detenção e as de internação. Em outro comentário, mais uma prova do que citei acima: é preciso ter fotos e nomes. “A sociedade precisa saber os nomes desses agressores para se proteger dessa gente”. Ao cobrar o nome e exposição, o internauta não conhece ou não leva em conta o que prevê a legislação no tocante à imagem e identificação de crianças e adolescentes.

Desde o uso comercial da internet em 1994, se acreditava que a internet era um espaço em que tudo ocorria e nada se descobria. Era o quarto escuro das maldades! Os avanços tecnológicos e do trabalho das polícias científicas provaram que não é bem assim… Na internet só não se descobre o crime praticado por lá se o órgão investigador não quiser. E nesse contexto, ainda se tem ações tímidas nos poderes públicos, segmentos educacionais e as várias instituições de controle e protetivas às pessoas em situações de vulnerabilidade para uma educação digital. É compreensível até porque no âmbito real enfrentamos essa dificuldade da educação caseira, do respeito à integridade física e emocional do outro, de pouca reflexão e consciência do que é da esfera pública e privada. E desses meandros entre esfera pública e privada, nem os agentes do Estado e da Justiça estão imunes.

O ano de 2018 foi tomado por cobranças de parte da sociedade por segurança e redução da maioridade penal. Sem debates, diálogos, apenas motivada pelo choque da rotineira cobertura dos programas policiais. Também vem crescendo uma ojeriza de parte da sociedade à educação sexual na sala de aula, levando em consideração a faixa etária e o tipo de conteúdo adequado para cada uma. As pessoas andam buscando soluções práticas e rápidas: suprimem informações que poderiam ajudar as crianças a denunciarem mais rapidamente qualquer ato de abuso ou violência sexual e se amplia a maioridade penal para adolescentes.

Esses justiçamentos não combinam com a democracia. A violação aos direitos das crianças e adolescentes também não combina com a democracia. Nem os vazamentos de quem deveria gerir e preservar o sigilo de um processo envolvendo menores de 18 anos combinam com a democracia. Ou a gente luta por uma educação digital ética ou seremos engolidos pela ânsia de compartilhar, julgar e condenar toda e qualquer pessoa. Até que chegue o nosso dia de sermos lançados ao paredão dos bits. Mas, ainda fica uma pergunta: qual será o papel e a responsabilidade da mídia diante da educação digital e frente ao justiçamento cibernético?