Encerra-se neste domingo um ciclo da democracia brasileira. Um ciclo dentro de outro ciclo, melhor dizendo. O primeiro é o que começa com a reconstitucionalização de 1988.
Esse é o da persistente consolidação do Estado democrático de direito que a Constituição Cidadã vigente enseja, projeta e realiza.
Um percurso histórico que a nossa sociedade transpôs em meio a problemas gravíssimos, parecidos com os que enfrentamos hoje.
Entre as crises mais expressivas havia a econômica que se acirrou, e muito, depois da eleição direta do primeiro presidente da República em 1989. O agravamento resultou do confisco da poupança operado pelo Plano Collor aliado ao tabelamento de preços.
Foi um inferno. O desespero sentou à mesa do jantar. E amanhecia na cidade e no campo. Muita gente foi parar no hospital. Mas não havia remédio para o sequestro do dinheiro sob a guarda da carcereira Zélia Cardoso de Mello.
Esses fatos simbolizam razoavelmente o desastre que foi o (des)governo de Fernando Collor. A semeadura da corrupção praticada à época pelo grupo no poder, denunciada pelo irmão do próprio presidente, resultou numa colheita positiva. Mas não para os corruptos, e sim para a terra brasilis.
A nação colheu o impeachment do homem que terceirizou, roxo de cobiça, o governo a PC Farias em meio aos gritos de indignação de uma juventude que reinventou as marchas democráticas no Brasil. Os caras pintadas impuseram uma tomada de posição da sociedade contra o despreparo de um radical do individualismo ególatra que tomara o poder pelo voto com o apoio luxuoso da Rede Globo. A Globo glorificou o “caçador de marajás”.
Collor foi impichado em 1992 (ele renunciou, mas o Congresso concluiu o processo de impeachment). Itamar Franco, o vice, assumiu propondo mais dúvidas que certezas. No entanto, seu governo criou o Plano Real. Com uma nova moeda fortalecida pelo empuxo do neoliberalismo ativado pelo Consenso de Washington, o país iniciou o desmonte da roleta inflacionária. A inflação alimentava todo tipo de especulação improdutiva. Foi derrotada por Itamar que fez o sucessor, Fernando Henrique Cardoso, que fez o que fez.
FHC cimentou o caminho para que uma coalizão de centro-esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), grande novidade partidária da redemocratização, conquistasse a Presidência da República com um ex-operário na cabeça de chapa. Ao mesmo tempo, o PT aprofundou a corrupção em proporção nunca antes vista na história desse país.
O Governo Lula promoveu uma inédita inclusão social com avanços a exemplo do Bolsa Família, pleno emprego, as menores taxas de juro da história (a Selic caiu de 25% em 2003 para 8,7% em 2009), e terminou com uma taxa de aprovação de tirar o fôlego: 80%. Lula fez a sucessora, e com Dilma Rousseff a democracia avançou mais. Principalmente no combate à corrupção. Com ela, o Brasil conseguiu botar na cadeia ministros, parlamentares e empresários corruptos.
Hoje, porém, a inflação está de volta, o desemprego é um pesadelo, a estagnação econômica ameaça programas sociais importantes e uma proposta de impeachment contra a primeira mulher presidente da República promove o fechamento desse ciclo em que o Estado democrático de direito é confirmado pela estabilidade das instituições nacionais. Apesar de tudo.
O segundo ciclo, concêntrico, que se fecha no circuito republicano da nossa democracia é o do protagonismo da sociedade brasileira sinalizando para o vigor dos princípios da democracia direta que se abre com os grandes eventos de massa ocorridos em junho de 2013.
O movimento foi inicialmente contra o aumento das passagens de ônibus em São Paulo, evoluiu para a crítica da violência policial, mas também praticou agressões, e mergulhou finalmente numa sucessão de marchas que atraiu milhões de pessoas de Norte a Sul contra tudo e contra todos que representavam as forças políticas institucionalizadas.
As redes sociais com seus canais de autopublicação viabilizaram uma nova militância cidadã que cresceu a partir das revelações feitas pela operação Lava Jato que chegou ao patrimônio milionário não declarado do ex-presidente Lula.
Neste domingo histórico, 17 de abril, os conflitos, contradições, golpismos, oportunismos, esperanças, temores, incertezas e inteligências da política brasileira fazem um teste histórico no palco em que se transformou a Câmara dos Deputados presidida por um réu da Lava Jato. A votação da abertura do processo de impedimento da presidente da República é o umbral para a maturidade da democracia entre nós. Superar o resultado da votação é o grande desafio. Vencida esta etapa, iniciará então o Brasil um novo ciclo de sua história democrática republicana.
(Reprodução do jornal A União, de 17/04/2016)