Desde os idos tempos da crise do “mensalão”, e agora no “petrolão”, duas narrativas antagônicas disputam espaço na opinião púbica brasileira, cada uma das quais visando prevalecer, na cabeça de Bart Simpson, como a versão totalizante de justaposição dos fatos.
A primeira versão, predominante, que começou a ser difundida na cobertura por jornalistas ligados ao PSDB, e pode-se dizer, até hoje, majoritária, afirma que ambos os casos de corrupção (o mensalão e o petrolão) significaram um salto de qualidade. Antes, diz-se, a corrupção era individual e não tinha um comando centralizado no vértice do aparelho de Estado, o que é uma evidente mentira. Nestes dois casos recentes de corrupção, afirma-se, em vez de individual, o comando localiza-se no próprio centro e se irradia para as margens. Pretende beneficiar um projeto de poder, nesta versão, autoritária, de hegemonia de um determinado partido – o PT. Esses esgrimistas das ideias são lobos em pele de cordeiro, verbalizam uma crítica aparentemente (somente aparência) angelical, pois desconheço existir partido político na história do mundo sem projeto de poder. Mas existe uma segunda corrente, minoritária, e esboçada por vários intelectuais independentes, de esquerda e setores do próprio PT, inclusive por mim. Alegamos que a corrupção envolve não apenas um partido, mas todo o sistema político, enlaçando num só torvelinho governo e oposição.
Mudo de parágrafo, mas continuo raciocinando em termos bipolares. Para mim, são dois os motivos de não se poder absolver à priori os governos do PT, nestes 13 anos de hegemonia lulista no bloco de poder. A longevidade no comando da máquina administrativa impõe responsabilidades intransferíveis a este partido, por culpa ou omissão, que não podem ser terceirizadas. Depois, durante anos o PT pregou e ascendeu sob a bandeira da ética na política, propôs-se, desde os tempos da primeira campanha presidencial de Lula, nos trezes pontos da Frente Brasil Popular (1989), a “desprivatizar o Estado”.
No entanto, sejamos claros: a vontade da oposição, nem de longe, passa pela “desprivatização o Estado”. Pretende-se de fato banir o PT da esfera pública, e de roldão inibir qualquer alternativa consistente de esquerda. Para tanto, torna-se necessário criar uma falsa imagem do antagonista – e, no mesmo movimento, manter o sistema político viciado, inclusive no que tange à continuidade dos esquemas de corrupção. Todo mundo político sabe que, no congresso nacional, um dos argumentos de bastidores de líderes do PSDB de impedimento de Dilma reside precisamente na necessidade de o novo governo impor limites à atuação da Lava-Jato. Para tanto, torna-se necessário criar uma falsa imagem do antagonista.
De maneira oportunista, o PT é vendido como um corpo estranho à democracia brasileira. Em final de dezembro passado, assisti na televisão um cientista político falando alto e bom som que o PT cultua programaticamente a ditadura do proletariado. Falso como uma nota de dois reais. Nem pela origem, nem pelas experiências concretas de direção do governo federal, Estados e municípios. Poderia passar por ignorância se não soubesse de memória que o entrevistado – Sr. Augusto de Franco – foi secretário-geral do partido em 1990. Melhor seria classificar o PT como um partido que transita, a seu modo, ritmo e dilemas, pelas experiências da tradição da social-democracia européia e do nacionalismo de esquerda latino-americano, no passado século XX. Se quiserem um exemplo histórico, os impasses do PT têm mais afinidades eletivas, para o bem e o mal, se me permitem a analogia, com o Partido Socialista francês que com o leninismo dos Partidos Comunistas ou dos pequenos agrupamentos dissidentes. Jamais os esquemas do leninismo fizeram a cabeça de Lula e da direção do PT. Quem por ventura veio por trajetória de vida do leninismo teve antes que renegar essas fórmulas, ajoelhar e rezar.
Uma questão puxa outra. Alguns bufões divulgam a articulação internacional do Fórum de São Paulo como se fosse uma organização centralizada, petista e bolivariana, nos moldes da antiga internacional comunista. Assisti recentemente um jovem inexpressivo senador do PPS bufando na TV Senado contra o Fórum. Interessante, mal sabe o senador que o seu partido esteve presente na fundação do Fórum, participando de vários encontros, assim como o PDT, o PSB e o PCdoB. Como quase ninguém acompanha as relações internacionais dos partidos no Brasil, mesmo jornalistas e militantes, o espectro de um órgão de consulta dos partidos de esquerda latino-americanos, se transforma na encarnação da besta-fera.
Passo à questão do “bolivarianismo”. Seria preciso delirar pensar que Lula é Chávez, Dilma é Maduro e os movimentos sociais brasileiros são iguais às brigadas bolivarianas. Na verdade, o chavismo foi resultado de uma ruptura, um momento instituinte, tanto que lá foi fundada numa nova república, eleita e votada uma nova constituição, enquanto, entre nós, tanto Lula como Dilma juraram fidelidade à constituição de 1988, mantendo o respeito a seus preceitos. FHC, por exemplo, alterou um artigo fundamental da constituição – há boatos de que houve compra de votos -, introduzindo a novidade da reeleição; Lula, no auge da liderança, rejeitou os incentivos de uma confraria de amigo s de perseguir u m terceiro mandato seguido.
Partidos nascidos na dinâmica do capitalismo e da sociedade civil de São Paulo, talvez haja mais afinidade remota entre PT e PSDB, no passado, que entre petismo e bolivarianismo. Se for verdade que irmãos de uma mesma família trilham caminhos diferentes e até podem se tornam inimigos – evoco Caim e Abel -, restam, lá no mais recôndito, para sempre, um liame das afinidades ancestrais. Em épocas diferentes, FHC, Lula e Dilma pilotaram as trocas do presidencialismo de coalizão brasileiro. Por isso, são risíveis as críticas ao PT de que ele “aparelhou” o Estado distribuindo cargos aos companheiros. O PSDB usou da mesma prática, dela foi acusado. A quem duvida indico a leitura dos maçantes “Diários da Presidência” de FH C e suas racionalizações do apetite de correligionários e aliados na estrutura das estatais.
O clima da luta política se radicalizou muito no Brasil de junho de 2013 para cá. Um ambiente de ódio irracional vem sendo cultivado. Fui testemunha de uma impagável de cena de catarse do recalque, assistindo a uma sessão de “Chico, um artista brasileiro”, de uma senhora entrar no cinema gritando – “o Chico é petista!; o Chico é comunista! O PT é partido de ladrão!”. Realmente, os ânimos de certos brasileiros estão definitivamente exaltados… Saberia a ilustre senhora que em 2005, no auge da crise do mensalão, por um momento, Lula pensou em renunciar e apoiar a candidatura do governador de Minas Gerais… Aécio Neves… num governo de “união nacional”?; – que, em 1989, as lideranças mais importantes do PSDB declararam o voto em Lula no segundo turno?; – que, em 1998, o falecido senador e babalorixá baiano Antonio Carlos Magalhães (PFL, hoje DEM) subiu as escadarias da Fundação Perseu Abramo, centro de estudos do PT, em 1998 para dissertar sobre o financiamento das políticas sociais de combate à pobreza? De parte a parte, poderia enfileirar inúmeros outros exemplos de “cordialidade”.
Fica fácil, no clima de Fla-Flu odiento instaurado imputar toda a corrupção ao PT, esquecendo do lixo embaixo do tapete de casa. Noticiou-se terça-feira (12/01) que no governo do ex-presidente FHC a Petrobrás negociou na Argentina a compra de uma petroleira que rendeu uma propina de 100 milhões de dólares (1 bi atualizados). Caso fossem apuradas verdadeiras, essas denúncias contra os tucanos derruem a narrativa de atribuir a corrupção exclusivamente ao PT e a miragem delirante de um pseudoprojeto de poder totalitário, alheio às instituições democráticas. Mas logo a notícia sumiu da mídia. Passou rápido feito um post de facebook, como se o objetivo estratégico fosse tornar FCH um cidadão inimputável.