Opinião: Discutir a cultura política é um imperativo dos tempos, analisa jornalista

Nunca foi tão urgente a discussão sobre cultura política. Não só porque estamos saindo de um período eleitoral totalmente diferenciado. A questão do financiamento de campanha sem dinheiro de empresas, a compressão do tempo para a mobilização eleitoral direta nos meios de comunicação, a judicialização radicalizada do processo, a disseminação sem limites do ódio por parte de certa
militância via redes sociais que favorece a disseminação de todo tipo de mentira… Tudo isso já seria suficiente para o lançamento de um grande debate nacional sobre o que estamos fazendo da política com a política. Um evento de muita, mas de muita força mesmo, abrangente e capaz de realmente motivar as pessoas a se pronunciarem. Algo parecido com a greve dos bancários.

Urgência tampouco devido ao impacto no cotidiano da nossa república democrática desse martelar de persistência robotizada produzido pela operação Lava Jato. Martelo que desprega os cravos que fechavam a caixa preta da corrupção sistêmica, orgânica, histórica, verdadeiro combustível fóssil para a carburação da ética transformada em chiste no bolso da maioria dos parlamentares.

Discussão urgente sobre a cultura política por força desse conjunto de fatores, mas também devido a fenômenos, que não são exclusivos do Brasil, a exemplo da agonia da participação política como uma responsabilidade permanente dos cidadãos.

Vejam o caso da Primavera Árabe. Parecia em 2011 que teríamos naquele espaço conflitado do mundo abertura para uma reflexão sobre se os povos queriam ou não adaptar certos ritos democráticos como eleições diretas.

No ano passado, a condenação à morte do primeiro presidente eleito do Egito foi uma demonstração de que a primavera havia perdido suas cores. Foi um golpe de Estado que mandou matar Mohamed Morsi. E não houve mais mobilização de rua. A truculência golpista espezinhou as flores da esperança…

O Brasil em 2013 marchou contra tudo que era considerado atraso em nossa vida política e econômica. As eleições seguintes, garantem as sociólogas e politólogos em geral, definiram o Congresso mais conservador desde que Jânio Quadros proibiu o uso de biquíni nas praias e piscinas nacionais.

Foi na onda conservadora desse Congresso que Eduardo Cunha surfou até desmantelar o lulo-petismo por completo culminando com o impeachment da primeira mulher eleita presidente do Brasil.

Nos Estados Unidos, cito um dado da semana passada, estavam empatados nas pesquisas de opinião pública a candidata Hillary Clinton (Democrata) e o também candidato a presidente Donald Trump (Republicano).

Trump, que despreza as mulheres, quer vigilância 24 horas para as mesquitas nos EUA, alguém que propõe murar o país para evitar a entrada de mexicanos e defende deportação em massa de imigrantes atrai nada menos que metade da opinião pública norte-americana.

Metade das pessoas ouvidas sobre essas barbaridades de Trump concordam com elas. Que cultura política é essa no país tido como o mais democrático do mundo? Perguntado sobre o fenômeno macabro dos atiradores que tantas vítimas inocentes já produziram no país, ele saiu-se com uma ideia em putrefação: tratamento em massa contra doenças mentais.

Em abril, o Movimento Endireita Brasil (Meb) ofereceu uma “recompensa” de R$ 1 mil para quem hostilizasse e filmasse num smartphone o ex-ministro Ciro Gomes durante um jantar em restaurante do Rio de Janeiro. “Ele é esquentadinho”, sugeriam os “endireitistas”, e certamente Ciro protagonizaria boas imagens recheadas de impropérios e imprecações. Tudo serviria para depreciar o ex-ministro que na época era um dos mais ardorosos defensores da presidente Dilma e contra o seu impedimento.

Poderia citar absurdos cometidos na Venezuela em nome da política. E o escândalo que é o morticínio em Aleppo? E a quantidade de candidatos assassinados no atual período eleitoral?

Insisto na tese de que discutir a nossa, a deles, a sua, a minha cultura política é um imperativo dos tempos. Se a mim fosse pedida sugestão de como orientar a discussão, eu traçaria uma pauta utilizando a velha fórmula clássica da ciência política que identifica três orientações fundamentais: a afetiva, que requer imersão nos sentimentos que as gerações registraram diante do fenômeno; a cognitiva, que propõe uma sistematização racional dos sistemas, a história, as crenças que os envolvem, as técnicas de decisão, o conhecimento acumulado sobre as práticas em geral, e finalmente a orientação avaliativa, que se fixa no conjunto de todos os valores, subjetivos, concretos, éticos.

Vivemos uma crise de governança em que o presidente da República não pode botar a cabeça de fora que leva uma vaia. Há arreganhos
contra a liberdade de imprensa, o discurso da intolerância e do autoritarismo está mais vivo do que nunca. Vamos discutir a política que temos e a que queremos. Em nome da política, apesar de tudo, ponte para a liberdade.

(Reproduzido de o jornal A União, edição de 05/10/2016)