“O Regresso” é irretocável na fotografia e seguro na narrativa, diz crítico

Fui ver O Regresso um tanto ressabiado. Havia uma campanha publicitária fortíssima de promoção do filme – que praticamente o consagrava sem muito espaço para “dissidências”. O típico caso da obra aclamada por uma série de pessoas sem ainda ter sido conhecida pelo público. Venceu as principais categorias do Globo de Ouro desse ano, considerado uma prévia do Oscar, e fez uma carreira robusta em outras premiações importantes.

Ao sair da sala de cinema meu receio inicial foi subvertido, minhas expetativas superadas e o filme acabou sendo uma experiência cinematográfica fluida e envolvente. Gostei muito do que vi. A produção é uma construção imagética grandiloquente e minimalista, de um naturalismo captado em minúcias. Que fotografia esplêndida! Trabalho tecnicamente irretocável e com o apuro visual de um artista. Um primor do primeiro ao último quadro. O mexicano Emmanuel Lubezki é um mestre na arte da captação de imagens para cinema e se ganhar o terceiro Oscar seguido de melhor fotografia – os outros foram por Gravidade e Birdman, em 2014 e 2015, respectivamente – será merecido.

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Leonardo DiCaprio interpreta o protagonista de O Regresso, um homem em busca da sobrevivência num ambiente hostil – e de vingança.

A condução da narrativa é segura, consistente e artisticamente primorosa. Iñárritu tem uma direção ousada e madura, os planos contemplativos e parte da dramaticidade visual remetem ao Terrence Malick, mas dentro de um filme épico e com ritmo intenso de ação assumem nova linguagem. Não temos aqui os longos espaçamentos dramáticos e narrativos, mas um frenesi ininterrupto.

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Em O Regresso, as cenas de perseguição são uma constante. O frenesi é continuo, assim como o primor gráfico e visual.

O fato de ter o Lubezki na direção de fotografia amplifica a referência à visualidade malickiana, já que o mexicano é também responsável por A Árvore da Vida e Amor Pleno, ambos trabalhos de muita sensorialidade visual – e há uma nítida referencialidade entre a fotografia deles e a de O Regresso.  Mas para além disso, o filme tem um estilo próprio e muito bem demarcado. Há nele um pouco do espírito de Jack London no conto clássico Fazer Uma Fogueira, que fala da luta pela sobrevivência tendo a natureza e as circunstâncias como adversárias.

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A fotografia é um dos pontos fortes do filme. Tem uma visualidade minimalista e primorosamente construída. Pelo trabalho em O Regresso, o diretor de fotografia, Emmanuel Lubezki, pode fazer história e ser o primeiro a vencer o Oscar três vezes consecutivas.

O Regresso gira em torno da história de um homem em busca da sobrevivência que tem uma vingança como eixo motivador. Enquanto luta para se manter vivo ele mantém o desejo latente de fazer justiça a si mesmo e as pessoas que mais amava. Vivencia todas as adversidades e intempéries possíveis, se lança numa empreitada insana em territórios inóspitos, adentra no coração da natureza selvagem e vislumbra a morte de perto por diversas vezes. O cenário são os lugares remotos dos EUA na fase pós-colonização, início do Século XIX, com disputa de território entre tribos indígenas, massacres e conflitos entre colonizadores.

Leonardo DiCaprio, o ator que interpreta esse homem, cuja história é baseada em fatos verídicos, está realmente excepcional, num papel que lhe exigiu bastante – fisicamente sobretudo. O tão esperado Oscar (de melhor ator) é algo praticamente certo – e será merecido – mas esse trabalho me deu a impressão de que não teria como ser diferente, tanto pela qualidade do ator em questão, quanto pela direção sempre competente e notável do Iñárritu e principalmente o apelo emocional que ela causa. Faltam maiores nuances dramáticas, é verdade. É tudo muito no limite do limite, visceral e corrosivo ao ponto de perturbar – mas sem, contudo, haver histrionismo demais. Entretanto, a culpa disso é da personagem e da proposta roteiro, não do ator.

DiCaprio - Cenas de Tensão - O Regresso
Momentos de tensão: em várias cenas de O Regresso, DiCaprio aparece em situações-limite.

Foram esses, dentre outros conexos, os aspectos que incomodaram muita gente que foi ver um filme, mas saiu decepcionada – porque esperava outro. Alguns amigos cinéfilos tinham a expectativa de ver refletido no filme de Iñárittu o adensamento humano, existencial, social e político presente em outras das suas obras. O jornalista e também crítico de cinema e outras expressões artísticas, Walter Galvão, admirador do trabalho do diretor mexicano assim como eu, escreveu um texto há alguns dias em uma das edições do jornal A União e republicado aqui no Paraíba Já que vai bem nessa linha.

O que meus amigos cinéfilos e o próprio Galvão talvez não tenham atentado, é que a proposta do diretor mexicano nesse filme foi outra. O Regresso não tem as transcendências filosóficas e a densidade dramática e sociopolítica de filmes como Amores Brutos, 21 Gramas, Babel ou Biutiful. Tem poucos respiros narrativos, poucas sutilezas – e isso, ao meu ver, foi intencional, uma opção estética e estilística.

A ideia, nesse caso, era realizar um épico de ação que envolve e que traz uma poeticidade visual inerente, que entorpece o espectador. Há muitos não-ditos verbais e também imagéticos, cuja simbologia é apenas sugerida. Não era o foco principal dizê-los. Nessa perspectiva, Iñárritu cumpriu magistralmente seu intento. Concordo, no entanto, com o subtexto do jornalista veterano de que não é “o filme do ano”.  De fato, há outras obras com bem mais méritos artísticos e de realização. Mas é seguramente um filme grandioso, um representante legítimo de uma filmografia expressiva e um marco do cinema contemporâneo.