O que se sabe sobre as principais acusações contra a China na pandemia

Impulsionado por políticos de direita — e mesmo alguns de esquerda — nos EUA, o discurso que culpa o governo da China pela eclosão da pandemia do novo coronavírus tem ganhado cada vez mais adeptos no Brasil.

Entre as críticas mais comuns, e que encontram diferentes graus de respaldo entre especialistas, estão a de que a China demorou para alertar o resto do mundo sobre a gravidade da covid-19 e a de que Pequim maquia suas estatísticas sobre a doença.

Muitas vezes, os argumentos se misturam com alegações de caráter conspiratório rejeitadas por estudiosos — como a de que o coronavírus Sars-CoV-2 foi criado em laboratório e serviria a um interesse de Pequim em dominar o mundo.

Ecoados por algumas autoridades brasileiras — entre as quais o ministro da Educação, Abraham Weintraub, e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) —, os questionamentos às atitudes de Pequim se tornaram um problema diplomático para o Brasil.

A Embaixada da China em Brasília rebateu as críticas de Weintraub e Eduardo, e coube ao presidente Jair Bolsonaro telefonar para o colega chinês, Xi Jinping, para tentar botar panos quentes.

Tempo para reportar casos

Parte das críticas à China se baseia no tempo que Pequim levou para compartilhar com o resto do mundo as informações iniciais sobre o surto.

Segundo a agência Associated Press, em 14 de janeiro, o dirigente de um órgão sanitário chinês disse ao governo central em Pequim que o vírus Sars-CoV-2 poderia ser transmitido entre humanos e que todas as localidades precisavam se preparar para uma epidemia.

Seis dias depois, no entanto, o governo da China afirmou publicamente que o vírus apresentava baixo risco para humanos.

Na época, a Organização Mundial da Saúde (OMS) chancelou a avaliação de Pequim: em 23 de janeiro, o órgão disse que era “muito cedo para falar de uma emergência de saúde pública de alcance internacional”.

Segundo um estudo da Universidade de Southhampton, no Reino Unido, se a China tivesse adotado suas medidas restritivas uma semana antes, o novo coronavírus teria infectado 66% pessoas a menos no mundo até o fim de fevereiro.

E se as medidas tivessem sido adotadas três semanas antes, os casos teriam sido reduzidos em 95%.

O mesmo estudo, porém, elogiou a abrangência das ações ordenadas por Pequim para conter o vírus, entre as quais a proibição de viagens, o isolamento de infectados, o fechamento de escolas e o cancelamento de eventos públicos.

Segundo os autores, caso as medidas tivessem sido adotadas uma semana depois, a pandemia teria atingido uma escala três vezes maior até o fim de fevereiro.

Censura

Críticos da resposta chinesa à covid-19 também citam a censura sofrida por pessoas que se manifestaram na cidade de Wuhan no início do surto.

Há forte controle estatal sobre as redes sociais na China, e o regime conduzido pelo Partido Comunista costuma reprimir críticas sobre temas políticos sensíveis, além de perseguir dissidentes.

Em dezembro, o oftalmologista Li Wenliang enviou uma mensagem a colegas alertando sobre um vírus com sintomas semelhantes ao da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) e sugerindo que usassem roupas de proteção ao lidar com infectados.

Li foi orientado pelo Departamento de Segurança Pública a assinar uma carta em que era acusado de “fazer comentários falsos” que “perturbaram severamente a ordem social”.

Posteriormente, Li adoeceu com covid-19, e autoridades locais lhe pediram desculpas pela reprimenda. Em fevereiro, o médico morreu, gerando uma onda de revolta entre internautas chineses.

Para o coletivo Chuang — grupo comunista crítico ao que considera o “capitalismo de Estado chinês” —, a resposta inicial de Pequim expôs suas incapacidades “a um número crescente de pessoas (chinesas) que anteriormente teriam aceitado a propaganda do governo sem questionamentos”.

“As pessoas estão começando a ver que o Estado é formado por funcionários e burocratas desonestos que não têm ideia do que fazer “, disse o grupo em um artigo publicado em seu site.

Semanas antes da morte do médico, o prefeito de Wuhan, Zhou Xianwang, já havia renunciado ao admitir falhas na divulgação de informações iniciais sobre o vírus.

Segundo Zhuou, 5 milhões de pessoas deixaram Wuhan dias antes da imposição da quarentena, o que contribuiu para o espalhamento do vírus para outras partes da China e do mundo.

Postura oficial de Pequim

Apesar da admissão de falhas pelo prefeito de Wuhan, autoridades em Pequim têm negado que a China demorou a relatar o surto.

Nas entrevistas coletivas organizadas pelo Ministério das Relações Exteriores chinês, jornalistas estrangeiros que abordam o tema costumam receber uma resposta padrão.

“Nós reportamos os casos para a comunidade internacional, compartilhamos a sequência genômica do vírus e promovemos cooperação internacional para conter o vírus no prazo mais rápido possível”, disse Geng Shuang, porta-voz do ministério, em resposta a um dos últimos questionamentos sobre o tema.

Outra crítica comum à China diz respeito à confiabilidade dos dados sobre mortos e infectados pela doença no país.

Até a segunda-feira (27/4), a China reportou cerca de 84 mil casos e 4,6 mil mortes pela doença, uma fração dos índices divulgados por outros países com população bem menor que a chinesa.

Na Itália, por exemplo, houve 200 mil casos e 27 mil mortes. Nos EUA, foram um milhão de casos e 60 mil óbitos.

A discrepância fez com que muitos questionassem se Pequim não estaria escondendo os dados reais para vender uma imagem de sucesso no combate à pandemia.

Na semana passada, um estudo publicado por pesquisadores de Hong Kong na revista científica Lancet estimou que o número de casos de covid-19 na China poderia ser quatro vezes maior que o divulgado.

Os autores analisaram as mudanças metodológicas na forma com que a China contabiliza as ocorrências e estipularam quantos casos teriam sido registrados se os critérios atuais tivessem sido adotados desde o início.

Em meio aos questionamentos, o governo chinês revisou seus dados em 17 de abril e elevou em 50% o número de mortes por covid-19 em Wuhan.

O governo atribuiu a mudança à demora em reportar casos ou a falhas para registrá-los, mas negou a intenção de esconder a dimensão do surto.

Especialistas apontam, porém, que há subnotificação de casos em vários outros países, ainda que ela não seja intencional.

No Brasil, por exemplo, um estudo feito em abril pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade de Brasília (UnB) estimou que, por causa da falta de testes, o total de brasileiros infectados poderia ser até 15 vezes maior que o anunciado.

Origem do vírus

Outras críticas que têm sido feitas à China têm menos respaldo científico. É o caso, por exemplo, da afirmação de que o novo coronavírus teria sido propositalmente criado no Instituto de Virologia de Wuhan.

O instituto estuda alguns tipos de coronavírus presentes em morcegos e fica a cerca de 14 km do mercado em Wuhan inicialmente apontado por autoridades chinesas como a origem do surto.

A hipótese, porém, é considerada improvável pela maioria dos cientistas que a avaliaram.

Em artigo publicado em fevereiro na Lancet, cientistas de vários países afirmaram que há sólidas evidências de que o vírus surgiu entre animais selvagens.

Em outro artigo, na revista Nature Medicine, pesquisadores disseram que o patógeno é 96% semelhante a um tipo de coronavírus presente em morcegos e bem diferente dos coronavírus conhecidos por afetar humanos.

Segundo os autores, caso tivesse sido criado em laboratório para infectar nossa espécie, o vírus teria sido construído com base nos coronavírus conhecidos por afetar humanos, e não morcegos.

Outras versões dizem que um pesquisador chinês teria se infectado no laboratório ao manusear um morcego, dando origem à propagação da doença entre humanos. Ou seja, o coronavírus teria ultrapassado os limites do laboratório como resultado de um acidente.

Essas teorias citam acidentes que teriam ocorrido no mesmo laboratório no passado. Em uma dessas ocorrências, citada pelo jornal Wuhan Evening News, um pesquisador teria se infectado ao manusear a urina de um morcego em 2012, tendo depois passado 14 dias em quarentena.

As teorias também citam relatórios diplomáticos obtidos pelo jornal The Washington Post. Segundo os relatórios, diplomatas americanos que visitaram o laboratório de Wuhan em 2018 se disseram preocupados com a segurança das instalações.

Virologistas consideram, no entanto, que é muito mais provável que a transmissão do vírus para humanos tenha ocorrido fora do laboratório.

Isso porque a população rural da região convive intensamente com animais selvagens por meio da caça e do comércio ilegal — e, diferentemente de pesquisadores em laboratório, não os manuseiam com equipamento de proteção.

Da BBC Brasil