O mito da ressocialização na execução penal brasileira

Logo em seu primeiro artigo, a Lei de Execução Penal brasileira (Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984) estabelece que um dos objetivos da execução penal é “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”, o que é conhecido popularmente como ressocialização.

No entanto, não é nenhuma novidade que o nosso sistema prisional possui um cenário caótico e que a esperada ressocialização, nos moldes como é idealizada pelo imaginário coletivo, revela-se uma exceção. O que não se compreende ainda suficientemente por essa mesma coletividade é a dimensão do caos que dificulta o retorno ao convívio social daqueles que passam pelas instituições penais do país e as razões que podem explicar esse fenômeno.

Conforme os dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP), mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil possuía, em fevereiro deste ano, 862.292 pessoas privadas de liberdade. No entanto, não é possível constatar de maneira confiável o número de presos (as) no Brasil, o que já denota, de início, um grande problema que sequer tem seu tamanho conhecido.

Isso porque o Monitor da Violência (iniciativa de jornalismo de dados em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP, que se utiliza de pedidos fundamentados na Lei de Acesso à Informação submetidos às secretarias estaduais de Administração Penitenciária e Segurança Pública) indicava no mesmo período que o país possuía 756 mil pessoas privadas de liberdade, enquanto o último levantamento do Ministério da Justiça, em 2019, indicava a existência de 773 mil reeducandos no sistema prisional. Uma divergência nos números que chega à assustadora marca de milhares de pessoas.

E, tomando como base os dados do Ministério da Justiça, o Brasil possui 442.349 vagas no total de suas penitenciárias. Assim, temos uma média de quase duas pessoas ocupando o lugar que deveria ser de uma, o que é apenas mais uma das facetas do caos.

Dos mais de 700 mil e sabe-se lá quantos presos, mais de 30% são provisórios, ou seja, cerca de um terço dessas pessoas não receberam condenação. Um imenso contingente de seres humanos que pode nunca vir a receber uma, mas que já foi exposto ao ambiente subumano e dominado por facções que constitui a regra do nosso sistema. Que levará consigo o duro estigma imposto pela sociedade aos que passam pelos estabelecimentos prisionais. Pessoas que terão afetadas por um longo e vagaroso tempo suas relações familiares e de amizade. E pode ser que suas vidas nem mais se restabeleçam. Aí, quem sabe, voltem ao sistema prisional sem que uma autoridade precise violar qualquer direito.

Ainda conforme o Ministério da Justiça, nas 1.422 unidades prisionais brasileiras apenas 15% das pessoas encarceradas estão envolvidas em atividades de trabalho e somente 12% em algum tipo de atividade educacional. Pessoas presas que não estudam ou trabalham porque o mesmo Estado que escolheu a ressocialização como objetivo da execução penal não está possibilitando as condições necessárias para tanto. E esse Estado ainda espera que de alguma maneira as pessoas vivenciem o que ele considera por normalidade depois de passarem pela prisão, e, junto com ela, pela continuidade da falta de oportunidade de estudo, de trabalho, de condições minimamente dignas de sobrevivência para si e para seus familiares, que ainda são expostos a revistas vexatórias, a situações humilhantes para exercerem o direito de visita que esse Estado também estabeleceu.

Com uma população prisional que cresceu vertiginosamente nas últimas décadas (saindo de 137 presos a cada 100 mil habitantes em 2000 para 338 presos por 100 mil habitantes em 2020), a criminalidade no país não demonstra retraimento que ajude a a justificar minimamente o encarceramento massivo. Pelo contrário, a regra nesse período foi o crescimento dos índices de delinquência ou pelo menos sua estabilização na maioria dos tipos de delito (conforme análise do Anuário de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública dos anos 2010, 2012, 2014, 2016 e 2018, com dados de 2008 a 2017).

Para nos dar a certeza de que prendemos bastante e ainda fazemos isso da pior maneira possível, temos a constatação de que apenas 10% dos presos do país são por homicídio e a estimativa de que mais de 80% das ocorrências desse tipo de crime não são solucionadas pelo nosso sistema de justiça criminal. Estimativa porque, conforme a pesquisa “Onde mora a impunidade”, realizada pelo Instituto Sou da Paz, apenas seis estados foram capazes de fornecer tais dados, ou seja, os outros 21 governos estaduais não souberam sequer informar quantos casos de homicídio foram investigados ou solucionados. Em vez de enfrentarmos as dezenas de milhares de assassinatos no país, estamos apenas lotando nossos presídios de pequenos traficantes, o que não se mostra suficiente para enfrentar o comércio de drogas dominado de maneira sofisticada pelo crime organizado e desencadeador de outras práticas delituosas.

Essa ineficiente política de encarceramento, que não ameaça as grandes estruturas da criminalidade organizada, atinge um perfil bem claro dos brasileiros: 75% da população prisional do país ainda não acessou o ensino médio, tendo concluído, no máximo, o ensino fundamental; 64% das pessoas presas são negras, enquanto na população total brasileira acima de 18 anos a parcela negra representa 53%; e, do total de encarcerados, 55% têm entre 18 e 29 anos, ao passo que na população total essa faixa etária representa apenas 18% dos brasileiros.

Mas, se prendemos muito e essa política de encarceramento em massa não é capaz de diminuir a criminalidade, sem apresentar quaisquer justificativas racionais para sua continuidade, por que ela segue cada vez mais forte? A resposta pode estar no papel, fundamental para a reprodução das desigualdades sociais e à manutenção dos privilégios de alguns ao custo do sofrimento da maioria, que têm sido exercido pela prisão ao longo da história, assunto que será tratado de maneira mais detida em um próximo texto e que aprofundará a ideia de que o fracasso da função ressocializadora da pena não é um acaso, mas a confirmação do que ela sempre foi: um mito, idealizada propositadamente para que assim o fosse.