Livro é algo morto na estante, só há vida quando leem, diz Maria Valéria Rezende

Quando perguntada sobre o momento em que se enxergou como uma escritora, Maria Valéria Rezende surpreende na resposta. “Nunca. Eu nem sei se eu escrevo mais um livro”, declara com a maior naturalidade do mundo. A escrita para ela é algo fluido, não compromissado.

“Escrever continua a ser pra mim: ‘O que eu vou fazer? Estou livre hoje, quero fazer uma coisa que dê satisfação, pra me restaurar, estou cansada, preciso me animar’, eu sento e escrevo uma história, sabe? É o meu divertimento. Divertimento parece ser uma coisa muito superficial, mas não é. É o meu prazer, é o meu gosto – e depois se os outros gostarem, ótimo!”, justifica.

Ela afirma que apesar de já escrever há anos e ter uma quantidade razoável de material guardado, não pensava em editar e publicar seus escritos.  “Eu nunca planejei editar, nunca mandei livro nenhum (para as editoras)”, revela Maria Valéria para depois emendar na revelação de que fora descoberta através de presente textual que dera a um amigo.

“Eu não tinha dinheiro, vivia de educadora popular aí ‘pelos matos’, dinheiro era última coisa que tinha. Quando algum amigo fazia aniversário eu não tinha dinheiro pra comprar presente. Então, o que eu fazia? Escrevia uma história, desenhava – nesse tempo eu desenhava bastante bem – fazia uma capa bem bacaninha, fazia uma edição única ‘está aqui seu presente de aniversário’”, complementa ela. Em seguida relata como num feliz acaso do destino, seus textos chegaram às mãos de um editor literário.

“E foi assim que eu dei (os contos) para um amigo e três anos depois uma pessoa de uma editora me ligou (dizendo) que tinha lido um texto e tinha adorado, queria tudo que eu tivesse (escrito e guardado). Eu fiquei na dúvida, fiquei assim, falei ‘Não, que é isso?’. Aí mandei umas coisas, só porque eu fiquei curiosa de ver o que eles iam dizer”, explica ela.

“Daí o cara me mandou para uns pareceristas, era tudo elogiando.  Mesmo assim fiquei desconfiada, porque se fato de alguém querer editar garantisse a qualidade literária, não haveria tanto livro ruim no mundo”, diz ela com sua habitual modéstia.

Excessivamente cética consigo mesma e bastante autocrítica, foi só depois de uma escritora consagrada, a imortal Lygia Fagundes Telles, dar o seu “aval analítico”, que ela concluiu que tinha gabarito literário para publicar seu primeiro livro.

“Lembrei que eu tinha na minha agenda o endereço da Lygia Fagundes Telles. Pensei: uai, vou perguntar pra ela se (o que escrevo) presta ou não, se eu devo publicar ou não. Porque ela vai ler três páginas e vai saber. Uns 15 dias eu recebo pelo correio, subscritado à mão, com aquela letra linda, um cartão postal da Academia Brasileira de Letras e escrito atrás ‘Não lhe escrevo mais longamente porque estou de partida para o Ano do Brasil na França, mas li seu livro. Publique sim, você é uma escritora séria’”, relatou.

Sobre o ato de escrever, Valéria revela que o faz primordialmente para dar vazão a ela própria, para aguçar a sua percepção da realidade e das pessoas. “Eu escrevo primeiro pra dizer para mim mesma: ‘olhe pra isso’”, afirma ela, acrescentando que tem várias ideias e enredos de histórias guardados que nunca foram publicados. “Eu não preciso ter perspectiva de publicação para desejar escrever”, ressalta.

“Uma coisa é porquê eu escrevo. Eu escrevo porque é um processo pra mim necessário, para manter minha própria saúde mental, emocional etc, afinar minha compreensão do mundo e dos outros”, acrescenta.

Valéria diz que vê, na publicação dos seus livros, uma oportunidade para dar destaque a figuras humanas tradicionalmente postas à margem de tudo e todos, cujas vozes e as histórias são sistematicamente ignoradas. “Eu publico quando eu me acho responsável por dar voz aos meus personagens, que em geral não tem voz para o mundo letrado. Eles são sínteses de infinitas gentes que estão aí e que são invisíveis no geral”, enfatiza ela, que completa analisando que a escrita do texto está intrinsecamente ligada à relação que ele estabelece com os eventuais leitores.

“O escritor só existe se houver leitor, se não o que há é massa de papel e tinta. O livro é uma coisa morta na estante. Ele só ganha vida de parceria, quando alguém abre e começa a ler. Quando eu fecho, ele morre. E alguém pega o meu livro, abre e vai ler, o livro ressuscita”, metaforiza.