O horror e a crueldade do desrespeito à vida tratada como detalhe insignificante

O humano, uma fronteira – O horror está aí arranhando com insistência por esses dias as retinas da sociedade brasileira. É para todo mundo ver. E é mesmo de encher os olhos o seu talento de escultor do que não se aceita no salão das barbáries da atualidade.

Num dia, os meios de comunicação exibem emoções em vermelho que asfixiam e entontecem: amontoados num pátio de prisão, dedos, cabeças, pernas, troncos de seres humanos degolados, eviscerados e desmembrados. Estão ali. E por todo canto onde se espalha o desencanto midiatizado.

No dia seguinte, é alguém que atropela, e esmaga, em alta velocidade um funcionário público que cumpria o expediente numa barreira de contenção a motoristas alcoolizados.

O criminoso acelera e foge. Sobre a pista, sobre o sangue, derrapam deveres, responsabilidades se debatem sem ar feito peixes na areia ao meio-dia.

E na rede do amargor do humano bestializado fica o lixo que afronta a civilização abalroada pelo comboio da transgressão que se quer regra, que se acha o certo.

Mas como há males que vêm para agravar os males mais ainda, eis que irrompe na madrugada uma ordem de soltura do furioso veloz. Foi solto antes mesmo de ser preso. Isso aconteceu enquanto a vítima agonizava. A vítima do atentado no asfalto morreu. Um horror.

Esse horror significa a contestação direta ao estado democrático de direito enquanto prerrogativa da cidadania. E representa o descredenciamento sistemático da autoridade estatal em todos os níveis.

Um horror que inscreve nos muros do cotidiano um apelo à desigualdade como afirmação de zona de conforto de pessoas que se acham mais iguais que outras.

Nesta zona, a desigualdade é um arado cinco bacias cavoucando a terra para o implante da semente da impunidade. Impunitas peccandi illecebra. É isso que reza o brocardo latino: a impunidade estimula a delinquência. Sábias palavras nos legaram os antigos.

Se as palavras são ímãs, como queria Freud, desigualdade há de atrair sua oposta: igualdade. Igualdade que nos remete ao ciclo obviamente inacabado da revolução francesa, esse espasmo histórico que tanta coisa mudou há séculos para que o mundo continuasse o mesmo: estrutura passível de mutação.

Mutação que avança, mas que também emperra como no caso dos presídios onde o horror está a solta num túnel do tempo medieval. Medieval pós-moderno dos interneticídios armados até os drones.

Na casa da impunidade, que alimenta seus ocupantes com o sereno da vergonha que liberta o apenado em potencial, a mutação também esfria ao ponto do congelamento.

E congelados estão nossos corações por esses dias em que igualdade e fraternidade sofrem o constrangimento da perda da liberdade.

Igualdade e fraternidade estão emparedadas.

Prisioneiras entre a crueldade do desrespeito à vida do outro que é tratada como um detalhe insignificante, e a brutalidade que agride o pacto que sinaliza com o Estado enquanto símbolo de justiça sob a imparcialidade dos princípios republicanos que nos orientam para a vida pública.

Um sábio proclamou no início deste século que a ética frente ao amor carece permanentemente de novos suprimentos psicossociais para que mantenhamos em nosso horizonte e na consciência a espiritualidade que conquistamos com a complexidade das relações da cultura através da linguagem.

Há essa percepção racional de que somos também um espírito, diferencial da materialidade crua do existir sem intencionalidade. Percepção indicativa de que os estados de insegurança decorrem de uma confusão entre os limites internos e externos da nossa liberdade de ser.

O conhecimento desses limites é que determina se nossos filhos serão apenas crianças e jovens erráticos e vacilantes que se acovardam perante os desafios, ao invés de curiosos sensíveis e questionadores rebeldes que assumem de cara suas atitudes.

Determina também se os nossos presídios serão as jaulas que preparam ao inferno ou uma contenção exemplar.

Precisamos nos emancipar dessa armadilha que é a perda do afeto que nos impulsiona à dignidade. Ser humano é isso: o sentir-se digno em coletividade como projeção da autoconstrução da individualidade digna que é minha e do outro.

Ser humano: a fronteira que importa a todos nós.

Reproduzido do jornal A União, edição de 25 de janeiro de 2017.