O Brasil e a arte de negar a ideologia dos extermínios

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Devemos negar a existência da ditadura, da tortura e do cerceamento da liberdade? Devemos negar a história documentada na época e a história fragmentada que foi sendo construída pelas vozes de quem foi perseguido, preso e torturado ou daqueles que até hoje buscam um saco com ossos para enterrar?

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O Brasil é um país farsante desde a colonização. Parte relevante da história do país foi construída em cima de meias verdades e de discursos que maquiavam as atrocidades instituídas como projeto de existência até se tornar projeto de nação.

Nega-se até hoje a escravidão e suas consequências para o povo negro, mesmo diante dos indicadores sociais, dos inúmeros estudos qualitativos e quantitativos produzidos. Nega-se!

Todos os extermínios registrados na história do Brasil, desde o massacre contra os índios durante a colonização até o dos negros durante o auge do tráfico de humanos chegando a Canudos traz essa “maquiagem”.

Mas, não para por aí. Do confronto no Araguaia e da ditadura até as mortes de moradores nas favelas… todos receberam ou recebem a tintura para a posterioridade, seguindo a lógica de que todos os atos foram praticados em função de um bem maior.

Negam-se as atrocidades, as truculências, a violação da integridade humana e o extermínio das populações. Por que o Brasil não iria negar a ditadura, a tortura e o extermínio de quem se opôs de 1964 até o enfraquecimento do regime militar?

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A negação da ditadura sempre existiu por parte de muitos militares e de segmentos da sociedade contagiada pelo verde e amarelo e uma nostalgia de um país para poucos, brancos, classe média litorânea e alienados para as urgências seculares do país.

Na última semana, quando as águas de março fechavam o verão, começaram as “celebrações” do que chamam de “Revolução de 1964”. Se analisarmos os personagens e os cenários de 1964 e 2014 dá para ver similaridades em discursos, narrativas políticas e papéis desempenhados.

Havia governo de esquerda no poder, liderança política adversária pedindo destituição e apoiando uma intervenção, um STF apático e famílias que comungavam dos mesmos princípios morais que o regime impôs marchando nas ruas. Se fossem só os princípios morais em jogo!

Nasci em plena ditadura. Cresci vendo TV com aquele alerta da folha datilografada que mostrava antes de cada programa que ele havia sido autorizado pelos censores. Na época, a formalidade não me parecia algo grave, afinal, eu era apenas uma criança que detestava a dobradinha de cantar o Hino Nacional no sol forte das 7 horas no pátio da escola e ao subir à sala de aula ter que rezar as várias orações católicas.

A dobradinha militarismo adicionada aos ritos católicos revelaram-me como as ideologias se tornam ritos e dos ritos vão se tornando intrínsecas aos indivíduos. Mais por coerção do que por prazer, embora racionalmente se acredite que é puro prazer.

Apenas no ensino médio que entendi a amplitude e gravidade do que foi a ditadura. No curso técnico em contabilidade ganhei do professor de Direito o livro ‘Brasil Nunca Mais’. As minúcias das torturas e dos Inquéritos me chocaram.

Tempos depois ainda na disciplina Educação Moral e Cívica na antiga Escola Técnica Federal da Paraíba (ETFPB), a professora – que por sinal era prima da minha mãe – resolveu discutir Direitos Humanos à luz da Constituição de 1988 e usava como contraponto o estudo histórico da ditadura militar.

Vivi tudo isso para ver gente mais velha que eu exaltando a ditadura como revolução e negando as atrocidades cometidas e assim corroborando para o que disse no começo desse texto: a forma como o Brasil e o brasileiro lidam com a negação.

Muitos jovens têm abdicado das ciências e das comprovações, dos estudos históricos para negar a ditadura.

Na fase anterior ao século XXI existiam a verdade e os fatos. A verdade era a perspectiva sobre os fatos. Mas, os fatos eram tal qual. O contexto é que dependia das minúcias e interpretações a partir da posição de quem a fazia.

No século XXI, regado pela internet, a interconectividade e a informação como ferramenta de guerra ideológica, a “verdade individual” venceu os fatos. Os fatos de nada valem diante das convicções individuais e coletivas. O importante é desconstruir os fatos e reconstruir as verdades numa remodelagem da negação, da maquiagem histórica como fato. Alguns chamam esse fenômeno de pós-verdade.

O mais grave não foi a manifestação individual ou coletiva de segmentos das Forças Armadas, mas sim a legitimação e o incentivo feitos pelo chefe do executivo brasileiro, Jair Bolsonaro. Devido a data que lembra o início do regime militar cair em um domingo, vários órgãos anteciparam a celebração e o que se viu na semana de 24 a 31 de marco foi um show de horror, desinformação, manipulação dos fatos, (suprimidos ou manipulados) e a comemoração de pessoas que – pasmem – em qualquer cenário de regime autoritário seriam alvos fáceis de represálias.

O assassinato do jornalista Vladimir Herzog: um dos maiores traumas no jornalismo brasileiro. Foto: Reprodução/Internet

Dois casos emblemáticos na ditadura foram os que envolviam o deputado Rubens Paiva, representante do legislativo, e o de Vladimir Herzog, jornalista que atuava em TV.

Décadas depois o corpo de Rubens Paiva ainda não apareceu. Vladimir Herzog, assassinado numa cela, foi transformado a partir da ótica dos militares e composição da cena em um suicida pendurado a uma corda.

A mesma truculência que matou Rubens Paiva e Herzog mirou em comunistas, mas atingiu crianças, jovens, idosos, mulheres grávidas. Tudo era justificável por conta da paranoia contra o comunismo e em defesa dos bons costumes.

Mais do que a celebração ou silêncio neste dia 31 de março de 2019, a fratura já havia sido exposta desde o momento em que o próprio Jair Bolsonaro na condição de deputado federal homenageou Carlos Brilhante Ustra, conhecido como torturador, durante o impeachment de Dilma Rousseff. Isso não chocou a grande audiência do povo brasileiro. De certa forma, legitimamos que a partir dali tudo era permitido. Tudo podia!

O Brasil nunca reconheceu, de fato, que houve uma ditadura. A própria Comissão da Verdade foi muito aquém do que poderia ter ido, mas havia um receio dos humores das Forças Armadas e a conivência – por ignorância ou maldade – de parte da população, e dos formadores de opinião que fizeram uma cobertura aquém do que deveria ter sido registrado à época.

A questão que fica como aprendizado e alerta é que diferente da Alemanha, que repudia o Holocausto, mas persiste em falar dele para as novas e próximas gerações. No Brasil, por outro lado, a tradição é silenciar para gerar desconhecimento e depois transformar os fatos em narrativas que se perpetuem ao gosto de quem prefere uma população que não saiba sobre as revoluções populares, as pessoas simples que se rebelaram contra os poderes constituídos e as resistências de Norte a Sul.

Até porque, seria muito perigoso mesmo que a grande massa do povo brasileiro tivesse ídolos e inspirações em pessoas simples e não em quem sempre foi contra os princípios básicos de igualdade e liberdade de um povo massacrado desde a troca de espelhos e pentes no primeiro contato dos europeus com nossos índios.