Músico da PB teria dado calote após criar vaquinha para tratar câncer

Cantor de 27 anos arrecadou mais de R$ 23 mil e recebeu doação até de Elba Ramalho. Sumiço, relatos conflitantes e falta de prestação de contas levantaram suspeitas

Um jovem músico paraibano diz que foi diagnosticado com um tipo raro de câncer, linfoma de Hodgkin, que afeta o sistema linfático. O cantor e compositor de 27 anos então cria uma vaquinha virtual e arrecada mais de R$ 23,6 mil. Contando com a ajuda de nomes importante do cenário cultural da Paraíba, o artista então se perde em versões equivocadas sobre diagnósticos e tratamento. Ele também acaba protagonizando um sumiço repentino, seguido de uma volta com supostas meias-verdades e explicações sobre a possível doença que o fez arrecadar tanto dinheiro em meio à pandemia.

Tudo começa, publicamente, no dia 27 de abril. O músico Matheus Alexandre Bezerra Cirne, conhecido como Matheus Brisa, faz um vídeo contando seus sintomas e sua possível doença, a partir disso cria uma campanha virtual para arrecadação de dinheiro. No dia 29, vai até o Hospital Napoleão Laureano, em João Pessoa, buscar atendimento médico após apresentar fortes dores abdominais e suspeitar de algum tipo de câncer. Ele fica em observação e, após uma consulta preliminar, é liberado sob prescrição de alguns exames para detectar as possíveis causas das dores.

Antes do dia 27, ele já tinha requisições de exames do Laureano. Assim que sai da consulta, Matheus Brisa vai às redes sociais expor o caso e conta que estava diagnosticado com um tipo raro de câncer, o Linfoma de Hodgkin – câncer da parte do sistema imunológico chamada de sistema linfático.

O músico então comenta, nas redes sociais, que o “linfonodo que estava na virilha” passou a estar “em todo o corpo, entre abdômen, pernas, pescoço, tórax, axila e braços”.

“Descobri que estava com um câncer chamado linfoma de Hodking, quando eu estava atrás do tratamento aconteceu a pandemia do coronavírus no Brasil. Sendo muito afetado, por minha família não ter condições financeiras de me ajudar e os hospitais em colapso, sou um paciente que corre risco fatal. Peço de coração ajuda de todos que sentirem o amor de ajudar uma pessoa que sorri sempre por dias melhores e que deseja viver para transbordar alegria como sempre, através da música. Toda ajuda será uma alegria imensa. Que Deus possa te dar em dobro por me ajudar a sonhar e sorrir novamente”, afirmou Matheus Brisa em vídeo.

A partir desse vídeo na internet, o músico cria uma campanha virtual para recebimento de doações, no site Vakinha, no intuito de bancar seu possível tratamento.

A rede de solidariedade

Com a vaquinha virtual no ar, um grupo intitulado ‘Fique em Casa PB’ então difunde o caso de Matheus Brisa, e a partir disso diversas personalidades da cultura paraibana passam a apoiar e divulgar a causa.

A cantora paraibana Elba Ramalho participa da rede de solidariedade em prol do músico, e, segundo informações do grupo, chega a doar uma quantia em dinheiro – não divulgada – para o jovem.

Tadeu Mathias, Polyana Rezende, Nathalia Bellar, Myra Maya, Ramon Schnayder e Sandra Belê também são grandes nomes da música que apoiam a “Luta contra o câncer de Matheus Brisa”. Lutadores de MMA com projeção internacional também encampam a rede em prol do artista.

Como o músico havia criado a vaquinha virtual, os artistas então passam a direcionar seus fãs e amigos para a página de doações, a fim de reverter quantias em dinheiro para Matheus.

A campanha dá certo. E com bom saldo financeiro. Matheus Brisa arrecada R$ 23,6 mil, bem mais que a meta de R$ 15 mil apontada no site, para o suposto tratamento contra um tipo raro de câncer. Além disso, o músico também teria recebido diversos depósitos direto em suas contas bancárias.

O início

É preciso voltar alguns dias para entender um pouco melhor o caso. Comovida pelo relato do jovem artista que circulava em grupos de WhatsApp com músicos e produtores musicais da região, Tiana Dantas, que já teve câncer em 2017 e hoje atua em um trabalho assistencial para pessoas com câncer, conhece Matheus no dia 28 de abril e presta total assistência. Ela vai até o encontro do músico, que se dizia abandonado, muito debilitado, já havia passado mal diversas vezes e fora abandonado pela família.

(Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)

Tiana faz compras com suplementos e alimentação específica para quem está com este tipo de problema de saúde. “Gastei inicialmente cerca de R$ 350, do meu dinheiro, com essa feira para ele. Fui deixar comida para ele algumas vezes, porque ele dizia que não tinha nada. Eu nem tinha carro na época, pegava de uma amiga e ia ajudá-lo. Uma vez ele me contou que estava mal, fui lá deixar almoço e disse que voltaria mais tarde para deixar a janta. Fiz suco verde, às vezes ele dizia que estava melhor”, relatou Tiana ao Paraíba Já.

Matheus relata para Tiana que não tem condições de ficar sozinho, nem tem alguém da família, pois foi abandonado após queixas sobre a possível doença. Portanto, ela o recebe em sua casa.

É Tiana quem consegue o atendimento para Matheus Brisa no Hospital Napoleão Laureano no fim de abril.

Como ela integra o grupo de risco não pode acompanhá-lo no atendimento, mas convida um amigo para ajudar, é Ricardo Bass. No dia 30 ele chega a dormir no hospital, como acompanhante de Matheus. Ao ver que Ricardo está cansado, Tiana então contacta a mãe do músico para buscar alguém da família para acompanhar o jovem no hospital.

Descobrem então uma irmã, por parte de pai, de Matheus. Ela mora em Lucena, na Região Metropolitana de João Pessoa. Porém, no dia 30 de abril, Matheus recebe alta hospitalar. Ele então passa o final de semana no município do litoral paraibano.

(Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)

“Se não for câncer, sei que você está com dificuldade como todos os músicos neste momento, mas não pode ficar com esse dinheiro. Fique com uma parte, você está precisando, mas doe o resto para uma instituição”, aconselhou Tiana, no começo.

O pai aparece

No dia 3 de maio, um domingo, Matheus dorme na casa de Tiana, já que iria ter uma bateria de exames no dia 4. Nesse período ele já arrecadou mais de R$ 15 mil na vaquinha virtual. Essa seria a última parte dos exames que formariam um possível diagnóstico para o músico.

Entretanto, um fato curioso despertou a atenção de Tiana: é o pai de Matheus quem leva o músico de Lucena para a casa dela. O jovem que se dizia abandonado agora teve o auxílio do pai para fazer seu transporte, mas não tem para sua saga em busca de uma resposta para seus sintomas.

Matheus Brisa ficou do dia 4 ao dia 6 de maio na casa de Tiana. Começam as suspeitas sobre a história do jovem. “Ele sempre dizia que havia passado mal a noite. Nunca vimos ele passando mal com os nossos olhos. De manhã cedo ele sempre contava que passou muito mal, teve falta de ar, dores, mas não chamava ninguém para não abusar da boa vontade. Mas ele estava na minha casa já para ter quem chamar, não tinha sentido isso”, afirmou Tiana. “Tudo isso se juntou com algumas coisas de antes e foi alimentando ainda mais uma desconfiança, mas eu sempre repreendia [meus pensamentos]”, acrescentou.

(Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)

Diagnóstico e sumiço

No dia 11 de maio, Matheus Brisa retorna ao Hospital Napoleão Laureano para levar todos os exames que tinham sido requisitados. Ele já está sem Tiana ou Ricardo, sua companhia agora era outra, a irmã – moradora de Lucena.

Nesta consulta do dia 11, o diagnóstico: Matheus não tem câncer.

Tiana disse que soube por fontes do hospital do diagnóstico. Não há nenhum contato do músico para informar a ela, que se solidarizou e prestou total auxílio, sobre sua situação.

Matheus Cirne teve outro diagnóstico. Conforme Tiana, ela soube que o médico relatou que ele poderia buscar outro tipo de tratamento, já que câncer ele não tinha.

Cobranças e a moto nova

Matheus some. São mais de duas semanas sem dar informações a respeito do seu estado de saúde para Tiana ou Ricardo, ou mesmo para qualquer membro do grupo que se disponibilizou a cuidar de sua saúde.

Diversas cobranças sobre o destino do dinheiro – prestação de contas dos gastos executados com exames e com o tratamento – e informações sobre o estado de saúde se amontoam no celular de Matheus.

Matheus chega a contar para Tiana que fez exames na Oncovida e Policlínica São Lucas, mas ela entra em contato com essas empresas e nenhum Matheus Cirne tinha passado por avaliação médica nos locais. As versões se tornam cada vez mais conflitantes.

No fim de maio, Matheus Brisa aparece com uma motocicleta nova na casa de Ricardo, conforme informações de membros do grupo que ajudaram ele.

O músico então mostra um diagnóstico de gastrite e úlcera cicatrizada. Matheus também contou o que teria feito com parte do dinheiro: pagou contas pessoais como aluguel, feiras, além de comprar um smartphone. “Na sequência, bloqueou todos os membros do grupo, deixando de responder sobre as informações acerca da compra da moto”, relatou outro membro do grupo, que preferiu não se identificar.

“Ele ficou com o dinheiro todo e desapareceu”

Outras pessoas envolvidas na campanha também relatam que o músico “apagou todas as postagens relativas a campanha das suas redes sociais abertas [Facebook e Instragram] e escalou a irmã e a própria mãe para encaminhar áudios em tom de ameaça ao grupo que se mobilizou para ajudá-lo”.

Má fé e indignação. São essas as palavras que resumem o sentimento de Tiana neste momento. “Desde o começo ele vem usando de má fé. Ninguém nunca viu ele passando mal de verdade. Ele agora está dizendo que vomitou sangue, não existiu isso, nunca vi, nos piores momentos nunca teve isso. Ele tinha umas ínguas, de fato tinha, mas todo mundo tem. Me afastei dele. Fiz o que pude, e agora estou revoltada como todos. Só de mim, ele deve ter levado mais de R$ 500”, revelou.

Matheus bloqueou Tiana e Ricardo Bass das redes sociais. “Falei que se não fosse câncer, para ele devolver o dinheiro ou doar. Ele não fez nada desse tipo, ficou com o dinheiro todo e desapareceu. A cada dia ele inventa uma mentira”, disse Tiana.

Denúncia formal

Nove pessoas já registraram Boletim de Ocorrência contra Matheus Brisa. Além disso, buscaram um advogado e devem entrar com uma queixa-crime contra o músico.

“Não resta outro meio para aferição da conduta. A notificante e demais testemunhas registraram Boletim de Ocorrência na Delegacia Virtual e protocolaremos uma ‘nottitia criminis’, como o objetivo de buscar providências em defesa da honra das pessoas pessoas envolvidas nesta campanha, bem como para não por a perder a credibilidade de trabalhos sociais desta natureza”, informou o advogado Rômulo Oliveira.

Nottitia criminis é quando o conhecimento da infração penal chega na autoridade policial por meio de um expediente escrito, podendo esse ser um boletim de ocorrência (B.O) ou uma petição (denúncia ou queixa).

Confira nota da defesa do grupo:

Esses tempos de pandemia tem se tornado o ambiente ideal para a prática de delitos na internet. A comoção deflagrada pelo ambiente pesado, mortes em massa e, ao mesmo tempo, a solidariedade dos paraibanos viraram a matéria-prima ideal para estelionatários arquitetarem e aplicarem seus golpes.

No Código Penal Brasileiro, o crime de estelionato está disposto no Artigo n.º 171 da seguinte maneira:

Art. 171 Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artificio, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa. (BRASIL, 1940).

Qualquer indivíduo que cometer os atos dispostos no caput do artigo estará cometendo o crime, porém, ainda existem modalidades diferentes do delito que exigem do indivíduo uma característica especial. A vítima desse criminoso será também qualquer pessoa que sofra com o ato, porém, para se caracterizar nas modalidades diferenciadas do crime, deverá a vítima apresentar características especiais. O objeto jurídico que é afetado por esse crime é o patrimônio da vítima, e, o objeto material é a vantagem obtida ou a coisa alheia.

O que diz Matheus Brisa

“Deus sabe que nunca faria tal coisa. Não me internaria e faria tal mal a ninguém por benefício próprio, por safadeza, ou por estelionatário. Abomino isso, só peço empatia e que se coloquem no lugar de uma pessoa que está realmente doente e que só quer tentar viver e se curar”, escreveu Matheus Brisa nesta terça-feira (30), em seu perfil no Instagram.

Ao interagir com usuários, ele confirma que não tem câncer, mas mantém a versão que precisa de dinheiro para tratar outra doença. “Bem, como não é câncer apenas uma gastrite, você pode devolver o dinheiro que eu e outras pessoas doaram para você. Gastrite é tratável e você não precisa dos mais de R$ 20 mil arrecadados, para tratar isso, doe para o Hospital Laureano, onde pessoas realmente têm câncer e precisam de ajudar”, comentou uma usuária.

Matheus Brisa então respondeu, e na réplica para a usuária deixa claro que não tem câncer. “Tu sabe quanto tempo é o tratamento? O médico me falou que até tem pena de mim porque é prolongado e os remédio são caros. Eu sou uma pessoa que sou artista, vivia da música, além de ter parado todos os shows por conta da aglomeração, sou sozinho. Os remédios são caríssimos, tenho que pagar dieta, que a cada duas semanas gasta R$ 400 em comidas, tenho que pagar vitaminas que são caríssimas. Fora locomoção para alguém me levar para João Pessoa. Hemorragia no estômago mata não e só câncer avançado, e quem tem condições em tempo de pandemia de cama, vomitando sangue, defecando sangue, para pagar um tratamento prolongado em tempo de pandemia?”, disse o músico.

Matheus Brisa publicou um vídeo de quase 15 minutos onde se defende das denúncias sobre o suposto golpe. Assista:

https://www.instagram.com/tv/CCC8Fu5Bi_N/?igshid=y27t0wt4l2s0

Atualizada às 11h10