Militantes dos direitos humanos: a vida dos que não tem quem lute por si

Uma semana antes de ter sido assassinato, Manoel Mattos havia recebido sua última ameaça. Flávio Pereira, sargento da PM acusado de ser comandante de um dos grupos de extermínio que o ativista denunciava, entrou em uma churrascaria do centro do Itambé e, ao perceber a presença do advogado, declarou, em alto e bom som:

– “Um dia ainda mato você!”.

A promessa foi cumprida.

Essa, no entanto, foi apenas uma das inúmeras ameaças que o ativista vinha sofrendo. Em suas lembranças, sua filha, Manuella Mattos, lembra de constantemente viver sob a sombra do medo de que algo de repente acontecesse a seu pai.

E aconteceu.

O caso, que completou 10 anos no último dia 24 de janeiro, é emblemático para os direitos humanos não só pela luta que ele já travava nessa defesa, mas, também, por dois outros motivos: primeiro, seu caso foi o primeiro no Brasil a ser federalizado, ou seja, teve sua competência repassada da justiça estadual à justiça federal devido à grave violação aos direitos humanos; segundo, em 2002, a comissão da Organização dos Estados Americanos (OEA), havia solicitado que o Brasil adotasse medidas cautelares para a proteção do ativista, assim como de outros defensores dos direitos humanos, como o deputado Luiz Couto.

No momento do seu assassinato, porém, ele não estava sendo protegido. Isso, aliado ao fato de Manoel Mattos ter feito um verdadeiro compilado das ameaças que sofria, foi um dos principais motivos para o caso ter sido federalizado.

Para um dos assistentes de acusação no caso, atualmente professor da UFPB, Eduardo Fernandes, a federalização garantiu ao caso uma espécie de justiça às avessas. “Foi um passo importante na busca de resolutividade de um caso de grave violação de direitos humanos e também garantiu uma espécie de justiça às avessas: Manoel Mattos lutava a favor daqueles que o estado não protegia e, por conta da ausência da proteção do estado, acabou morrendo, mas a federalização do seu caso deu uma importante contribuição à defesa dos direitos humanos no Brasil. Foi a primeira fez que o instrumento da federalização foi utilizado, o que garantiu uma nova possibilidade aos defensores que estão em busca do combate à impunidade”, argumentou.

Além do caso do advogado itambeense, no entanto, apenas dois outros casos, nos últimos dez anos, em todo o país, foram federalizados: um em Goiás, que transferiu para a Justiça Federal a investigação e o julgamento de diversos casos de homicídio, tortura e desaparecimento de pessoas no estado, com o envolvimento de policiais militares; e um outro também em Pernambuco, que previa o deslocamento da investigação, do processamento e do julgamento dos executores do assassinato do promotor Thiago Faria Soares, à época com atuação na Comarca de Itaíba (PE).

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Brasil é o país com maior número de assassinatos a defensores de direitos humanos

Outro dado assustador sobre o assunto vem de uma pesquisa realizada pela Global Witness, organização internacional fundada em 1993, e que apontou que o Brasil é o país que contabilizou o maior número de assassinatos de defensores de direitos humanos e sociambientais em 2017: enquanto 207 ativistas foram mortos em cerca de 22 países, só no Brasil ocorreram 57 desses assassinatos.

Para Sandra Carvalho, coordenadora da ONG Justiça Global, organização de Direitos Humanos que teve forte atuação no caso Manoel Mattos, a morte do ativista não é uma exceção e encontra reflexo em um caso que recentemente também chocou a sociedade brasileira: a morte da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro.

“Ainda é uma questão extremamente grave para o nosso país. A federalização, por mais que tenha sido uma vitória, é um instrumento que precisa ser aperfeiçoado. Por mais que a gente tenha conseguido a realização de um juri na Justiça Federal, por outro lado ainda é necessária a investigação dos casos de grupos de extermínio que o Manoel Mattos denunciava. Essa é uma realidade não só no Nordeste mas em todo o país. Tanto existem grupos de extermínio que têm em sua formação integrantes das forças policiais como também há os milicianos. O Estado tem que agir”, opinou.

‘A impunidade ainda é a lei que opera’, diz coordenadora da Justiça Global

Em novembro de 2005, a Câmara dos Deputados aprovou o relatório final da CPI que investigou a ação de grupos de extermínio no Nordeste. O documento detalha o modo como os matadores aterrorizam a população que vive nas cidades de Itambé e Pedras de Fogo, na divisa entre Pernambuco e Paraíba, epicentro da pistolagem no país. A CPI descobrira a identidade de pistoleiros, mandantes e policiais dos dois estados, que participavam dos grupos. Ao final dos trabalhos da CPI, porém, duas testemunhas que colaboraram secretamente com os deputados foram executadas.

Nos anos que se seguiram, alguns outros crimes envolvendo investigados na CPI do extermínio foram cometidos. É o caso do sargento da Polícia Militar Arnóbio Gomes Fernandes, que em 2010 foi preso por porte ilegal de arma; em 2012 foi preso em uma operação Esqueleto, relacionada ao tráfico de drogas e homicídios na Grande Campina Grande; e em 2012 foi detido acusado de ser o mentor do assassinato do radialista Ivanildo Viana.

O deputado federal Luiz Couto, por sua vez, que também é padre, filiado ao PT, e que esteve ao lado de Manoel Mattos na luta contra os grupos de extermínio, hoje, embora afirme que ainda é alvo de ameaças, prefere entregar sua segurança a Deus que aos homens: “a vida é a coisa mais plena que existe, e eu sei que aqueles que não foram condenados ainda estão por aí, mas o que eu posso fazer é continuar com a minha missão que é lutar pela justiça. Hoje eu entrego a Deus minha segurança. Não posso temer o que esses homens me façam”, diz.

Júri do caso

Dois dos cinco acusados de envolvimento no assassinato do advogado foram condenados pelo crime, em júri popular realizado no Recife. O sargento reformado da PM da Paraíba Flávio Inácio Pereira, apontado como um dos mandantes da execução (e que tinha proferido a ameaça pouco tempo antes), e José da Silva Martins (autor dos disparos) foram considerados culpados pelo Conselho de Sentença. Flávio Inácio Pereira e José da Silva Martins pegaram, respectivamente, 26 e 25 anos anos de reclusão em regime fechado por homicídio duplamente qualificado com dois agravantes (motivo fútil e sem dar chance de defesa à vítima).

Os outros réus – Cláudio Roberto Borges (que também foi apontado como mandante), José Nilson Borges (que teria emprestado a espingarda usada no homicídio) e Sérgio Paulo da Silva (que teria acompanhado José da Silva Martins) – foram absolvidos.

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