Foram muitas as manifestações de violência em grau inimaginável de estupidez, crueldade e brutalidade ocorridas nos últimos dias. Elas confirmaram o despedaçamento continuado de alguns modos de ser ideais da modernidade parcialmente conquistados.

Devemos mencionar entre esses ideais a cultura da preservação da vida e promoção dos direitos humanos. Também a cidadania como status jurídico encapsulada na gênese do Estado-nação integra o campo das conquistas.

Está ainda nesse chão semeado o pacto moral histórico vigente. Ele foi moldado ao calor de tantas guerras e revoluções… hoje atrai e propõe, também problematiza, questões aos níveis da subjetividade e da privacidade que envolvem novas sensibilidades de amplo espectro.

A violência devasta a esperança de muita gente em busca de uma utopia da consciência igualitária para o acesso às liberdades. Consciência-ente da agenda da modernidade.

Modernidade, no entanto, que se alimenta tal e qual Leviatã à moda de Cronos: deglutindo filhos.

Ainda estávamos em choque com a notícia de crianças estupradas no banheiro de uma escola quando fomos assaltados pelo pavor resultante de uma matança em outra escola. A matança terrível havida em Suzano. Oito pessoas executadas.

Como numa celebração macabra do intento do Governo Bolsonaro de liberar armamentos para a população, dois jovens se armaram com intenção de matar. E mataram após meticuloso planejamento que incluiu a eliminação de estudantes a machadadas. Mataram muita gente. Inocentes imolados no altar da alienação narcísica, da espetacularização do terrível, da destruição do afeto e da empatia.

A dupla terrorista ultrapassou a fronteira do racional para imergir na (ir)racionalidade do projeto da linha de montagem do sujeito que ocorre sob o capitalismo. Linha de produção ideológica da consciência que cospe, tritura, que exclui, o diferente, o divergente. No caso do assassinato em Suzano, sujeitos adoecidos, traumatizados pela rejeição. E que rejeitaram a si mesmos na intenção realizada da destruição física do outro.

No Dia Internacional da Mulher foi sepultada a jovem espancada e queimada pelo namorado.

O assassino ao chegar ao quarto em que estava hospedado com a namorada confundiu o estupro do qual ela estava sendo vítima, cometida por parente, com ato de traição.

Mais uma vez, fronteiras do racional a que serve a moral foram transpostas em nome de uma presumível sujeição da “mulher-propriedade” ao seu dono. Isso funciona num esquema patriarcal de celebração ao machismo nosso de cada dia. Resumível na frase: fraquejei ao gerar uma filha.

Os fatos agora rememorados foram precedidos por uma cena também inquietante: uma mulher arrancou o dedo de outra a dentadas dentro de um shopping center da cidade. E o fez por ciúmes.

“Essa tendência à agressão, que podemos perceber em nós mesmos, e cuja existência supomos também nos outros, constitui o fator principal da perturbação de nossa relação com o próximo; é ela que impõe tantos esforços à civilização”. A constatação de que a tendência à agressão é uma bomba chiando em nossas mãos é do doutor Sigmund Freud.

Mas Freud explica a situação em que boa parte da mundo está mergulhada, esse pântano de fel que lança pessoas mar adentro em balsas improvisadas rumo à goela de tubarões e contra as quais querem construir muros? Onde pessoas buscam o fim da dor nas mãos milagreiras do médium e encontram abuso sexual? Onde pedófilos se escondem na religião para cometer abusos?

Não totalmente, mas dá pistas interessantes. A frase que reproduzi acima recortei do texto “Além do princípio do prazer” onde ele trata da pulsão de morte.

Mas está em “O mal-estar na civilização” uma abertura para a compreensão da persistência do instinto destrutivo que mobiliza jovens a se armarem e a atirar dentro de um shopping center ou de uma escola contra pessoas que sequer conhecem.

Nesse texto clássico estão os princípios dos processos que conduzem à agressividade e à autodestruição. Fenômenos agravados por conjuntura social e modelo de produção de emparedamento ideológico em que a mercadoria elevada ao nível de fetiche e a propriedade, um dogma socializador, produzem adoecimento em massa. Estamos doentes de violência. Doença que causou o assassinato de Marielle. E isso já há bastante tempo. O remédio mora nos modos ideais de ser da modernidade: tolerância, acolhimento, equidade, respeito aos direitos humanos e cidadania política com dignidade. Mas há quem lute permanentemente contra o que realmente importa na vida.