Liberdade religiosa: Festa de Iemanjá completa 55 anos na Paraíba

Lei que dispunha sobre “o exercício dos Cultos Africanos no Estado" foi sancionada em 1996 pelo então governador João Agripino

Mãe Penha era criança, ainda bem jovem, na primeira metade da década de 1960. Mas lembra que certa vez estava num terreiro de umbanda em João Pessoa quando a Polícia Militar da Paraíba invadiu o local. Foi uma cena de extrema violência. Os policiais começaram a quebrar tudo. Frascos de perfume, mesas, velas, imagem de Iemanjá, outros objetivos caros às religiões de matrizes africanas. Levaram presa a mãe de santa que realizava os rituais e agrediram fisicamente a mulher, que só deixaria a prisão no dia seguinte.

Era essa a triste realidade de uma terra em que não havia liberdade religiosa. Em que as religiões de origem africanas eram criminalizadas e proibidas por lei pelas autoridades constituídas. Uma realidade que só muda depois de novembro daquele ano, quando o então governador João Agripino sancionou a lei 3.443 de 6 de novembro de 1966, que dispunha sobre “o exercício dos Cultos Africanos no Estado da Paraíba”. É a lei, a propósito, que abre as portas para a realização da Festa de Iemanjá naquele ano nas praias de Cabo Branco, uma tradição que nesta quarta-feira (8), em que pese as dificuldades impostas pela pandemia de Covid-19, completa 55 anos.

Lei de 1996, assinada por João Agripino, autoriza a liberdade de cultos africanos na Paraíba — Foto: Reprodução/ALPB

Lei de 1996, assinada por João Agripino, autoriza a liberdade de cultos africanos na Paraíba — Foto: Reprodução/ALPB

É Mãe Penha, hoje uma médium e líder religiosa numa das raízes da umbanda, quem relembra aqueles dias anteriores à lei. De acordo com ela, tudo tinha que ser na clandestinidade, feito às escondidas, nos porões ou nos fundos das casas, com as pessoas chegando em segredo e saindo sem deixar pistas. Porque, quando a polícia descobria um encontro religioso da umbanda ou do candomblé, a violência era total. Sem pena, sem respeito, sem preocupações outras senão agredir.

Ela explica que a Festa de Iemanjá é comemorada na Paraíba em 8 de dezembro há mais de 100 anos, com origens no sincretismo religioso que assemelhava Iemanjá a Nossa Senhora da Conceição. Mas que, antes de 1966, não se podia ganhar as ruas.

“Se a polícia descobrisse, fechava, acabava, batia nas pessoas, era aquela confusão. Presenciei isso com meus 12 anos de idade. Era o maior sofrimento. A pessoa poderia ser presa apenas por viver a sua fé”, declara a mulher, que hoje é a presidente da Federação dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado da Paraíba (uma das muitas entidades que reúnem terreiros do estado).

Sair às ruas para professar a sua fé em um culto religioso é uma realidade historicamente recente na Paraíba — Foto: Walter Paparazzo/G1 PB

Sair às ruas para professar a sua fé em um culto religioso é uma realidade historicamente recente na Paraíba — Foto: Walter Paparazzo/G1 PB

Ainda de acordo com Mãe Penha, tinha muita agressividade nas abordagens policiais daquela época. “A festa não podia ser pública. A gente fazia tudo escondido. Não havia liberdades”, relembra.

A mudança se dá depois de muita luta, muita militância de antigas lideranças religiosas desses cultos afros. E se dá também por causa de João Agripino, um governador que, ainda que não fosse seguidor da religiões afros, era um simpatizante delas. Entre os mais velhos, ainda hoje ele é uma pessoa lembrada pela “lei da liberdade”, como cita alguns.

“Foi quando tivemos a liberdade de levar a festa para a praia”, destaca Mãe Penha.
Mãe Penha lembra dos tempos em que era proibido fazer festa na rua para Iemanjá — Foto: Mãe Penha / Acervo Pessoal

Mãe Penha lembra dos tempos em que era proibido fazer festa na rua para Iemanjá — Foto: Mãe Penha / Acervo Pessoal

A praia, a propósito, é um local importante para o culto a Iemanjá, visto que ela é conhecida como “Rainha do Mar”. É um dia, portanto, para ir até a “casa” dela, levar os pedidos, os presentes, as oferendas, oferecer danças e músicas, dialogar com a entidade.

“A lei de 1966 permitiu o nosso grito. Sermos alguém dentro da religião. O culto a Iemanjá vem de nossos antepassados. Mas fomos nós que começamos a levar a festa à praia. A Festa de Oxum para o meio da rua”, explica Mãe Penha.

A religiosa explica que, por causa da pandemia, não haverá a festa tradicional em 2021, quando mais de 30 terreiros de diversas partes da Paraíba se apresentam na praia, com danças e músicas. O evento ficará resumido a uma apresentação de um terreiro do município de Alagoa Grande, num ato bem menor, com menos gente.

Mas ela explica que, é certo, seguidores das religiões africanas devem ir em grande quantidade à praia, de forma livre e espontânea, mesmo sem a festa, para deixar seus presentes para Iemanjá. Uma tradição que nem essa “doença maldita” vai conseguir aplacar.

“Ela merece”, resume Mãe Penha.

Mesmo sem festa, a tradição de deixar oferendas na praia deve ser repetida na noite desta quarta-feira (8) — Foto: Walter Paparazzo/G1 PB

Mesmo sem festa, a tradição de deixar oferendas na praia deve ser repetida na noite desta quarta-feira (8) — Foto: Walter Paparazzo/G1 PB

Um sincretismo múltiplo

Professor da Universidade Federal da Paraíba, o antropólogo Estevão Palitot explica que as diferentes raízes das religiões de origem africanas fizeram o seu sincretismo religioso, a depender da região, com diferentes santos católicos. E seria por causa disso que o Dia de Iemanjá difere tanto de data.

Ele destaca que, na Paraíba, o sincretismo religioso é com Nossa Senhora da Conceição, e por isso a festa é em 8 de dezembro. Na Bahia, por sua vez, o sincretismo é com Nossa Senhora da Purificação, levando a data para 2 de fevereiro. Já no Ceará, as comemorações a Iemanjá são em 15 de agosto, Dia de Nossa Senhora da Assunção.

“Cada lugar do Brasil é um sincretismo diferente. Os africanos estavam lendo as religiões cristãs e estavam fazendo suas associações. Isso acontece porque são religiões de incorporação. Elas estão abertas ao outro. Esses povos estariam incorporando elementos do cristianismo”, explica Estevão Palitot.

Na Paraíba, o sincretismo religioso de Iemanjá é com Nossa Senhora da Conceição, e por isso a festa acontece em 8 de dezembro — Foto: Rede Amazônica/Reprodução

Na Paraíba, o sincretismo religioso de Iemanjá é com Nossa Senhora da Conceição, e por isso a festa acontece em 8 de dezembro — Foto: Rede Amazônica/Reprodução

Ele diz também que, em sentido contrário, os cristãos também fizeram suas assimilações. Tanto que, na Igreja da Penha, nas proximidades da vila de pescador que existe no local, existe uma inscrição em latim que se refere a Nossa Senhora como a “estrela do mar”.

De toda forma, Estevão é da opinião de que a Festa de Iemanjá é uma boa oportunidade para descortinar uma cidade muito mais plural e alegre. “É quando a cidade se revela. Toda a sua dimensão afro e indígena aparece. A cidade se revela para si mesma. Uma cidade que a gente julga exclusivamente cristã, católica e protestante, se mostra numa nova dimensão”.

Festa de Iemanjá de 2016: uma cidade muito mais colorida se descortina — Foto: Walter Paparazzo/G1 PB

Festa de Iemanjá de 2016: uma cidade muito mais colorida se descortina — Foto: Walter Paparazzo/G1 PB

Ademais, ele é da ideia de que a liberdade religiosa dada em 1966 é uma vitória da dignidade humana:

“A festa é fruto de uma conquista por democracia e direitos humanos. É quando o espaço público passa a ser de todos, e não apenas de uma pequena elite”, enfatiza Estevão.

As pioneiras

O pesquisador Valdir Lima, que é mestre em Ciências das Religiões e doutor em Ciências da Informação, autor do livro “Cultos Afros Paraibanos: jurema, umbanda, candomblé”, explica que o Código Penal Brasileiro em vigor à época previa os crimes de curandeirismo e de charlatanismo. E que, muito por causa de uma perseguição que se tornou mais intensa no Estado Novo, na era de Getúlio Vargas, os cultos africanos eram criminalizados e enquadrados nesses artigos, num ato que ele classifica como “preconceituoso”.

Mas que, mesmo com toda essa repressão, as lideranças religiosas não se abstiveram, lutando por décadas até terem suas religiões reconhecidas. Na Paraíba, a propósito, ele destaca a figura de duas mulheres que foram fundamentais para a liberação dos cultos africanos a partir de 1966.

A primeira é Joana Pé de Chica, considerada um ícone das décadas de 1920 e 1930 pelo direito de exercer a sua religiosidade.

“Ela foi muito presa, muito perseguida. Sofreu agressões verbais, violência física. Quando ela partiu, virou uma entidade. Hoje é ‘mestra’, que é uma entidade da jurema”, explica Valdir Lima.
Valdir Lima, pesquisador e seguidor do candomblé, destaca a força das pioneiras que lutaram por liberdade — Foto: Valdir Lima / Acervo Pessoal

Valdir Lima, pesquisador e seguidor do candomblé, destaca a força das pioneiras que lutaram por liberdade — Foto: Valdir Lima / Acervo Pessoal

De acordo com ele, a liberdade religiosa não é fruto exclusivo de um ato governamental, mas principalmente da luta incansável dessas lideranças. E, entre elas, Valdir cita também Maria Rita Preta, que hoje tem 96 anos e é uma das últimas ainda vivas daqueles tempos.

“Ela tem hoje o título de guardiã de Iemanjá. Ela lutou pela liberação dos cultos. Mora atualmente em Santa Rita e participou ativamente da organização da primeira festa”, relata Valdir Lima.

Ainda assim, o escritor reconhece que João Agripino teve ao menos esse papel legal de autorizar os cultos africanos na Paraíba, autorizar em lei a fundação da primeira Federação e proibir a repressão policial.

“Ele era um adepto. Ele estava presente na primeira festa na praia”, explica.

Iemanjá, a Rainha do Mar: uma liberdade de culto que é fruto da luta de mulheres paraibanas na primeira metade do século 20 — Foto: Mãe Penha / Acervo Pessoal

Iemanjá, a Rainha do Mar: uma liberdade de culto que é fruto da luta de mulheres paraibanas na primeira metade do século 20 — Foto: Mãe Penha / Acervo Pessoal

Luta contra o racismo religioso

Valdir Lima destaca que, apesar da lei ter completado 55 anos em 2021, o preconceito está longe de acabar no estado, fruto do que ele chama de “racismo religioso” existente no país. Um racismo, por sinal, que remete desde os tempos da escravidão.

Segundo o pesquisador, muito do sincretismo religioso existente nas religiões de matrizes africanas vem de uma tática dos escravos de cultuar suas entidades de forma disfarçada, sem serem descobertos. Fruto de uma violência que, em alguma medida, existe até hoje.

Para Valdir, a lei de 1966 liberou os cultos africanos na Paraíba, mas não conseguiu mudar o pensamento de parte da população cristã. Segundo ele, tem-se pouco a comemorar hoje em dia:

“Não mudou quase nada”, dispara Valdir Lima.

Ele cita o exemplo da estátua de Iemanjá construída na Ponta de Cabo Branco e que acabou, em mais de uma oportunidade, decapitada e com as mãos cortadas, partes do corpo que possuem uma simbologia muito forte na orixá.

“As pessoas não suportam ver algo diferente do que eles acreditam”, denuncia Valdir.
Imagem de Iemanjá já foi vandalizada várias vezes em João Pessoa; ato é descrito como "racismo religioso" por pesquisador — Foto: Walter Paparazzo/G1

Imagem de Iemanjá já foi vandalizada várias vezes em João Pessoa; ato é descrito como “racismo religioso” por pesquisador — Foto: Walter Paparazzo/G1

Ainda de acordo com o pesquisador, faltou uma posição mais enérgica das autoridades públicas para combater o racismo religioso e para proteger a imagem dos ataques. A luta por liberdade religiosa plena na Paraíba, alerta ele, afinal, ainda é uma luta que está em curso e longe de ser alcançada totalmente.

Do G1/PB.