Lawfare: o uso do direito como arma de guerra

Inauguro essa coluna – que a cada segunda-feira terá um novo texto meu ou de convidado (a) – tratando de um tema que ganhou notoriedade nos últimos anos, e, embora não se trate de um fenômeno novo no mundo jurídico, vem ganhando diferentes contornos.

O termo Lawfare é formado pela junção dos vocábulos ingleses law (Direito) e warfare (guerra/estado de guerra) e, na definição de Zanin, Martins e Valim , configura-se como o “uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo”. É a utilização do direito como arma de guerra.

Com o direito passando a ser manuseado como parte de um arsenal, não restam limites à sua manipulação, posto que numa guerra se entende valer tudo. E nesse cenário, em que tal desvirtuamento das leis pode se dar a partir de diferentes objetivos (militares, políticos, comerciais, geopolíticos etc), percebemos o sistema de justiça criminal assumindo um papel preponderante na atualidade. Com todo o caráter estigmatizante que o aparelho repressivo estatal é capaz de produzir, ele se torna ferramenta ideal para arruinar aquele considerado como inimigo.

Tal qual numa guerra convencional, o lawfare, na classificação de Comaroff, possui dimensões estratégicas que compreendem a geografia, o armamento e as externalidades.

No que se refere à geografia, o lawfare teria como campo de batalha os órgãos públicos competentes para a aplicação do Direito. Os objetivos serão mais facilmente atingidos com a identificação das jurisdições nas quais são maiores as chances de serem acolhidas as teses pretendidas e de serem flexibilizadas as garantias processuais do alvo, ainda que tais práticas sejam ofensivas ao ordenamento jurídico.

A dimensão relativa ao armamento é representada no lawfare pelo ato normativo escolhido para vulnerar o oponente, fato que ocorre mediante uso da norma jurídica indevidamente extraída pelo intérprete do texto legal. Nessa vertente, destaca-se o uso de legislações antiterrorismo, anticorrupção e relacionadas à segurança nacional, que geralmente possuem conceitos abertos e facilmente manipuláveis, conjugados a fortes medidas cautelares e investigatórias.

Por sua vez, as externalidades, que correspondem à terceira dimensão estratégica do lawfare, consistem nos artifícios utilizados em torno do Direito para deteriorar a imagem daquele que deve ser destruído e, com isso, conseguir que o desvirtuamento das normas receba pouca importância junto à população, tendo em vista que estaria sendo alcançado o justo fim de punir quem merece ser penalizado. Nesse âmbito, os veículos de mídia assumem um papel fundamental.

Não são raros os exemplos de casos recentes em nosso país nos quais as estratégias típicas da categoria trabalhada podem ser observadas e se atribui o uso de lawfare, como as operações “Ouvidos Moucos” e “Carne Fraca”, da Polícia Federal, além do mais emblemático deles, a Operação Lava Jato, que culminou na prisão do ex-Presidente Lula.

Além destes, vem-se discutindo acerca do uso de lawfare no âmbito da Operação Calvário no Estado da Paraíba, que investiga suposta organização criminosa infiltrada na Cruz Vermelha Brasileira, filial do Rio Grande do Sul, e onde são apontadas acusações baseadas em frágeis evidências, colaborações premiadas tratadas como provas cabais e prisões preventivas que não se justificam processualmente.

Sobre esse assunto, será lançado em setembro o livro “Lawfare: o calvário da democracia brasileira”, organizado pelos professores Maria Luiza Alencar, Leonam Liziero e Giselle Citadino. A obra, que conta com textos de Lênio Streck, Carol Proner, Pedro Serrano, Eugênio Aragão, Gustavo Batista, entre outros, analisa detidamente o fenômeno Lawfare e suas implicações na Lava-Jato e na Operação Calvário. Escrevi para o livro, em parceria com Daniel Macedo, o artigo “Operação Calvário: um caso de lawfare contra Márcia Lucena?”

Vale a pena a leitura e o aprofundamento nesse instigante tema que tem sido recorrente no campo jurídico e deve continuar sendo nos próximos anos.