João Pessoa possui célula de grupos nazistas, aponta pesquisadora

João Pessoa possui células de grupos nazistas, de acordo com um levantamento ainda inédito feito pela antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela identificou a existência de 334 células de grupos nazistas em atividade no Brasil. A maioria se concentra nas regiões Sul e Sudeste, mas há registros também em cidades como Fortaleza (CE), Feira de Santana (BA) e Rondonópolis (MT).

Em entrevista ao UOL, a pesquisadora ainda destacou o caso onde um grupo quis proibir a movimentação de cadeirantes na beira-mar da Orla da capital paraibana.

Confira texto na íntegra

Uma pesquisadora brasileira identificou a existência de 334 células de grupos nazistas em atividade no Brasil. A maioria se concentra nas regiões Sul e Sudeste, mas há registros também em cidades como Fortaleza (CE), João Pessoa (PB), Feira de Santana (BA) e Rondonópolis (MT).

Os grupos se dividem em até 17 movimentos, entre hitleristas, supremacistas/separatistas, de negação do Holocausto ou até mesmo três seções locais da KKK (Ku Klux Klan) –duas em Blumenau (SC) e uma em Niterói (RJ).

O estado com mais células é São Paulo, com 99 grupos (28 só na capital), seguido por Santa Catarina (69), Paraná (66) e Rio Grande do Sul (47). Em estados sem registros de atividades até pouco tempo, como os do Centro-Oeste, movimentos do tipo começam a ganhar corpo. Goiás, por exemplo, já tem seis células.

Células são grupos de três a 40 pessoas com ideais e atividades comuns. No caso dos neonazistas, segundo a Safernet, associação civil de direito privado com foco na defesa dos direitos humanos na web, trata-se de grupos que promovem a intolerância com base na ideologia nazista de superioridade e pureza racial com recursos de agressão, humilhação e discriminação. São pessoas que fabricam, comercializam, distribuem ou veiculam emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda com símbolos (como a cruz suástica) e a defesa do pensamento nazista.

A entidade é responsável, entre outras atividades, por receber denúncias e as encaminhar para as autoridades, como a Polícia Federal e o Ministério Público.

Os dados sobre a extensão desses grupos no país são parte de um levantamento ainda inédito feito pela antropóloga da Unicamp Adriana Abreu Magalhães Dias, um pioneira nas pesquisas sobre a ascensão da extrema-direita nos anos 2000.

Os detalhes e números completos devem ser publicados em um livro em breve.

Em suas pesquisas, ela já identificou mais de 6.500 endereços eletrônicos de organizações nazistas somente em língua portuguesa (metade caiu graças às suas denúncias) e dezenas de milhares de neonazistas brasileiros em fóruns internacionais.

“Normalmente, no Brasil, as células não se conhecem, não se conectam, a não ser as grandes. São grupos de pessoas que conversam, que se reúnem, e eu localizei essas reuniões por sites na internet, blogs ou fóruns. Nenhum deles tem uma corrente única. Eles leem autores que, pelo mundo, brigam um com o outro”, explica ela ao blog.

A finalidade dessas reuniões é diversa. “A própria leitura de textos nazistas é uma violência. Mas há também células que defendem pancadaria contra homossexuais”, afirma Dias.

Em setembro, os estudos da antropóloga foram citados pela ativista Sharon Nazarian, vice-presidente da ADL (Liga Anti-Difamação), em uma apresentação na Casa Branca, sede do governo dos EUA. A ADL é uma ONG judaica que luta contra o antissemitismo e a intolerância através da “informação, educação, legislação e defesa”.

Segundo a pesquisadora brasileira, Donald Trump está ciente do problema em seu país, mas não demonstra interesse em encarar a questão.

Ela diz que o movimento ganhou força no Brasil no início dos anos 2000, quando começou seus estudos.

Além de antropóloga, Adriana Dias sempre trabalhou como programadora de linguagens de computação, o que deu a ela as ferramentas para identificar os grupos pela internet –sobretudo na chamada “dark web”, o submundo de conteúdos não indexados da web, onde muitos dos grupos de ódios se organizam.

O nazismo se tornou tema de seus estudos após ler o livro “A Escrita ou a Vida”, de Jorge Semprún, um sobrevivente de Auschwitz.

“Ele falava o tempo todo do cheiro da carne humana queimada. Quando li aquilo, decidi que era o que eu precisava pesquisar.”

O interesse virou tema de trabalho de conclusão de curso, de mestrado e doutorado. Em sua tese, “Observando o ódio – Entre uma etnografia do neonazismo e a biografia de David Lane”, a autora investiga a importância do chamado “Hitler americano” para a ascensão de grupos neonazistas nos EUA e em outras partes do mundo, inclusive no Brasil.

Lane é um dos idealizadores do “The Order”, grupo criminoso responsável pelo assassinato, em 1984, do judeu Alan Berg, radialista e crítico da Ku Klux Klan e do Partido Nazista Americano. O supremacista morreu na prisão em 2007, e desde então tem sido cultuado pelos grupos extremistas.

Um tweet antissemita a cada 4 segundos

Em uma entrevista ao portal da Unicamp, Dias mostrou a dimensão desses grupos, que promovem uma postagem antissemita no Twitter a cada quatro segundos. Ela já calculou também que há uma postagem em português contra negros, pessoas com deficiência e LGBTs a cada oito segundos. David Lane é tema de ao menos 500 tweets diários.

Após mais de 15 anos de estudos, a antropóloga diz ter lido “todos os livros em todas as línguas” que sabe ler sobre o assunto e ainda se pergunta como “esse negócio” foi construído e como ainda faz sentido para muitas pessoas, a ponto de uma banca de revistas em Campinas, onde mora, vender centenas de edições de “Minha Luta”, livro em que Adolf Hitler despeja teorias racistas e antissemitas, por semana.

O engajamento é tanto que, há poucas semanas, após sair de uma cirurgia e receber orientação médica para ficar 20 dias em repouso, ela não conseguiu cumprir sequer um quarto da “pena”: em cinco dias já participava de uma mesa de debates na USP sobre ódio.

Meses atrás, quando eu escrevia uma reportagem sobre a chamada “dark web”, perguntei a ela o que explicava a existência de tantos fóruns de disseminação de ódio pelo mundo. Ela respondeu: “Porque existem pessoas que disseminam o ódio”.

“O ódio não é de agora. Sempre houve ódio racial, de classe, de gênero. Neste momento você tem uma articulação e uma sistematização deste ódio. Uma capilarização como projeto político em muitos lugares. E é impossível remover esse ódio enquanto você não civilizar as pessoas. É um processo muito complexo porque o ódio dá um conforto para elas”, explicou.

A construção desse ódio, segundo ela, está estruturada no culto à masculinidade que vai à guerra e despreza minorias (de onde surge, por exemplo, a homofobia), pela ideia de que uns são superiores a outros e têm direito a privilégios (meritocracia) e da construção de um “outro conveniente” que supostamente consegue o que a pessoa não conseguiu –algo que o próprio sistema de cotas potencializou nos anos recentes.

Nos fóruns de ódio, é comum observar um discurso segundo o qual o homem branco está sob risco em razão do casamento interracial e da adoção de crianças negras, por exemplo.

O integrante clássico desses grupos, segundo ela, é incapaz de analisar a conjuntura histórica em que está inserido, inclusive de entender os limites da economia e de um sistema de produção de riqueza finita que não permite ter tudo o que se deseja –e não porque alguém está “roubando” um direito natural.

A pesquisadora conta ter acompanhado com horror uma notícia recente segundo a qual, em João Pessoa, moradores de um bairro rico queriam proibir a circulação de pessoas com deficiência em uma praia de grande circulação turística. “Esse capacitismo pressupõe que as pessoas precisem ficar isoladas em uma instituição ou em suas famílias. O ódio vem daí. A sociedade construiu uma ideia de normalidade e isso faz com que a pessoa se sinta segura: se ela for normal, ela é o verdadeiro brasileiro.”

Em seus estudos mais recentes, Dias agora se debruça sobre um novo conceito de empatia desenvolvido pelo filósofo australiano Roman Krznaric. “Ele trabalha com o conceito de humanidade compartilhada. Isso é o oposto do ódio. O século 20 foi o século da interiorização. Ele defende um processo de ‘outrorização’, em que nossa humanidade precisa ser compartilhada em outras humanidades possíveis.”

É ali que pode estar a chave para destravar o entrave civilizatório atual. Um entrave trabalhado no ódio.