Governo federal foi alertado sobre falta de medicamentos para UTI, mas priorizou cloroquina

Distribuição da droga sem eficácia comprovada contra a covid-19 foi priorizada ao ponto de não saber o que fazer com milhões de comprimidos estocados

Ministério da Saúde recebe alertas desde maio sobre a falta de medicamentos essenciais para tratamento da covid-19 na UTI, como sedativos e analgésicos usados na intubação de pacientes graves. A pasta só aceitou participar da compra desses fármacos, com Estados e municípios, mais de um mês depois dos alertas, mas o cenário ainda é de desabastecimento. Em paralelo, o governo federal priorizou a distribuição de cloroquina, droga sem eficácia comprovada contra a covid-19, ao ponto de não saber o que fazer com milhões de comprimidos estocados.

Os registros de avisos ao ministério sobre desabastecimento de medicamentos para pacientes graves e sobras de cloroquina foram feitos à Saúde por membros do Centro de Operações de Emergência (COE), de maio a julho, conforme atas de reuniões obtidas pelo Estadão. Mais de 4 milhões de comprimidos de cloroquina e hidroxicloroquina estavam estocados no ministério e outros 4,37 milhões haviam sido distribuídos até 3 de julho, segundo documento do comitê. A ata ainda informa que todos os municípios tinham cloroquina e a pasta estava “aguardando maiores definições” para recolher ou não cerca de 1,45 milhão de doses que governadores queriam devolver. Procurado, o Ministério da Saúde não informou à reportagem que Estados eventualmente recusaram a cloroquina enviada. O órgão também não confirmou o estoque atual da droga.

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasens) disseram não reunir dados sobre devolução de cloroquina. A resposta caberia a cada Estado ou município. Sobre a distribuição do medicamento pelo Ministério da Saúde, o Conass afirma que “não há racionalidade em defender o uso desse produto dentro de uma política pública de medicamento, muito menos de forma precoce”. Enquanto a cloroquina era priorizada pelo governo, a situação em 3 de julho era outra para fármacos usados em UTI. Na reunião a portas fechadas, o comitê alertou que houve um “estouro de preços devido à alta procura” e o Ministério da Saúde ainda corria atrás de compras no Brasil e no exterior e de requisição de estoques da indústria farmacêutica. Na reunião, representantes de Estados e municípios afirmaram ter remédios para mais 2 a 6 dias.

Segundo gestores do SUS que participam de discussões do Ministério da Saúde, os primeiros alertas sobre o desabastecimento de medicamentos contra a covid-19 foram feitos em maio. A versão é confirmada por ata do COE do dia 14 daquele mês, que registra apenas “desabastecimento de medicamentos utilizados na UTI” como um ponto discutido. O acordo para o governo federal participar de compras de sedativos só foi feito mais de um mês depois, em 17 de junho, em processo que teve aval de gabinete da Procuradoria-Geral da República (PGR) que lida com ações contra a covid-19.

Na reunião de 29 de maio, membros do COE mostraram-se preocupados sobre o desabastecimento de insumos e medicamentos. A ata de reunião daquele dia registra orientação para a Anvisa realizar levantamento dos “possíveis problemas” e alerta: “Importante: Não fazer divulgação dos dados”. O documento ainda aponta risco de falta de 267 “insumos”, sem detalhar de que tipo, sendo que 88 “tem sua base principal com origem na Índia”.

A reação inicial do governo federal aos alertas foi questionar os dados sobre desabastecimento relatados pelas secretarias e afirmar que a busca pelo produto cabia a Estados e municípios, segundo gestores locais. O secretário de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, coronel Luiz Otavio Franco Duarte, declarou, em 13 de julho, que “não existe” justificativa para Estados e municípios deixarem de comprar estes medicamentos. E chegou a sugerir a aquisição com sobrepreço, como mostrou o Estadão. “Eu orientei o governo de Natal (RN). ‘Ah, coronel, está 600% acima (o preço)’. Compre. Abra processo administrativo, entregue ao Ministério Público. Faça o MP trabalhar”, afirmou em reunião da Câmara dos Deputados.

Apesar da sugestão de Franco Duarte, sequer o governo federal conseguiu solucionar a falta destes medicamentos. É justamente o preço de produtos encontrados no exterior, acima do valor tabelado no Brasil, que trava a importação. Nesta quinta-feira, o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, em entrevista à imprensa em Curitiba (PR), admitiu que ainda negocia descontos.

Professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e primeiro presidente da Anvisa, o médico Gonzalo Vecina afirma que é “inexplicável” ter cloroquina estocada e desabastecimento de medicamentos essenciais para UTIs. “A política de compra, de garantia de estoque regulador, ou mesmo de tentar importar produto, é do governo federal. O ministério importa com um ‘pé nas costas’. Já para um Estado ou município, comprar na pandemia é um desastre”, disse.

Tema de diversas atas de reuniões do COE e bandeira do governo Jair Bolsonaro, a produção de cloroquina levantou preocupações em técnicos da Saúde. Em 25 de maio, a ata de reunião do comitê registrava intenção de trazer 3 toneladas de insumos para fabricação do medicamento. “Devido à atual situação, não é aconselhável trazer uma quantidade muito grande, pois caso o protocolo venha a mudar, podemos ficar com um número em estoque parado para prestar contas”, ponderaram os técnicos. Naquela data, o governo tinha 1,46 milhão de comprimidos de cloroquina estocados e expectativa de receber mais 1,3 milhão de unidades do Laboratório do Exército, segundo documentos do comitê.

Apesar das ponderações do COE, o Laboratório do Exército produziu neste ano, por ordem de Bolsonaro, 3 milhões de comprimidos – cerca de 1,2 milhão segue estocado. O último lote feito pelo órgão, em 2016, era de 265 mil unidades.

O Ministério da Saúde não informou à reportagem qual o estoque atual de cloroquina. A pasta também não explicou se o número apresentado em 3 de julho já soma a doação de 3 milhões de unidades de hidroxicloroquina dos Estados Unidos e de laboratórios farmacêuticos ao Brasil. Em 19 de junho, o COE mostrou dúvidas sobre o que fazer com a carga recebida de Donald Trump, a pedido de Bolsonaro. Como o Estadão revelou, o medicamento terá de ser fracionado e o ministério quer que Estados assumam essa despesa. Na reunião deste dia, membros do comitê afirmaram que o Laboratório do Exército não tinha condições de preparar a droga para a entrega.

“Está tudo errado. Primeiro, o tema da cloroquina. O termo de consentimento (elaborado pelo governo) é desastroso. Exige que você aceite que corre risco de vida”, disse Vecina, professor da USP. “Não divulgar dados que são do interesse da sociedade? Isso não é republicano. O mundo jurídico tem de se manifestar”, completa.

Procurado para comentar pontos levantados pelo COE sobre falta de medicamentos e sobras de cloroquina, o Ministério da Saúde apenas afirmou que relatório da Anvisa não mostrou falta de insumo para fabricação de medicamentos. E que a divulgação destes dados cabe à agência. Também disse que a prescrição de medicamentos fica a cargo do médico.

Do Estadão