Fahima não para de chorar desde que seu marido disse que eles deveriam vender suas duas filhas, de seis anos e um ano e meio, para que a família não morresse de fome no Afeganistão.
A família foi deslocada pela seca no oeste do país e hoje vive em uma casa de barro coberta por lonas furadas no campo de pessoas deslocadas de Shamal Darya, em Qala-i-Naw, na província de Badghis.
Farishteh e Shokriya sorriem para a reportagem da agência de notícias France Presse, com o rosto cheio de lama e ao lado da mãe, sem saber que foram dadas em troca de dinheiro às famílias de seus futuros maridos, também menores de idade.
Assim que o valor total for pago — o que pode levar anos —, as duas meninas terão de se despedir de seus pais e do campo para deslocados onde eles encontraram refúgio.
Milhares de famílias deslocadas para a região — uma das mais pobres do país que é um dos mais pobres do mundo — também vivem esta trágica história (e também se mudaram fugindo da seca).
O casamento infantil ocorre há séculos no Afeganistão, mas a guerra, a seca e a pobreza levaram muitas famílias a recorrer a acordos cada vez mais cedo na vida das meninas.
Segundo um relatório de 2018 da Unicef (Fundo da ONU para a Infância), 42% das famílias afegãs têm uma filha que se casa antes dos 18 anos. A principal motivação é econômica, porque o casamento é visto muitas vezes como um meio de garantir a sobrevivência de uma família.
A prática é generalizada nos campos de deslocados. Os responsáveis pelos acampamentos e aldeias contabilizam dezenas de casos desde a seca de 2018 — um número que só aumentou com a de 2021.
Dívida na mercearia
Sabehreh, de 25 anos, é vizinha de Fahima. Sua família pegou comida fiado em uma mercearia, e o dono do comércio ameaçou “prendê-los” caso não pagassem.
Para pagar a dívida, a família vendeu Zakereh, de três anos de idade, e ela vai se casar com Zabiullah, filho do dono da mercearia que tem quatro anos. A menina não suspeita de nada, e o pai do seu futuro marido decidiu esperar até que ela tivesse idade suficiente para levá-la embora.
Sabehreh (à direita) e sua filha Zakereh, que está noiva do filho de 4 anos do dono da mercearia para cobrir a dívida da família, em foto tirada em 14 de outubro de 2021. Família mora no campo de pessoas deslocadas de Zaimat, em Qala- i-Naw, na província de Badghis. O casamento infantil é praticado há séculos no Afeganistão, mas a guerra, a seca e a pobreza levam famílias a vender suas filhas cada vez mais cedo. — Foto: Hoshang Hashimi/AFP
“Muitas pessoas estão vendendo suas filhas”, diz outro vizinho, Gul Bibi, que deu sua filha Asho, de menos de dez anos, para um homem de 23 anos com quem a sua família tinha uma dívida.
Asho ainda vive com a família, e Bibi teme que o comprador volte do Irã para tirá-la de seu colo. “Sabemos que isso não é certo, mas não temos outra opção”.
Asho (sentada), uma garotinha que ficou noiva de um homem de 23 anos por causa de dívidas da família, é fotografada em 14 de outubro de 2021 no campo de pessoas deslocadas de Shamal Darya, em Qala-i-Naw, capital da província de Badghis. O casamento infantil é praticado há séculos no Afeganistão, mas a guerra, a seca e a pobreza levaram muitas famílias a vender suas filhas cada vez mais cedo. — Foto: Hoshang Hashimi/AFP
Calvário interminável
Em outro acampamento em Qala-i-Naw, Mohammad Assan enxuga as lágrimas enquanto mostra fotos de suas filhas Siana, de nove anos, e Edi Gul, de seis, que partiram com seus respectivos maridos jovens.
Assan tenta se consolar e convencer a si próprio do que fala antes de mostrar os pedaços de pão que os vizinhos compartilham com sua família — sua única refeição do dia.
Ele também tem de pagar pelos cuidados de sua esposa doente e continua endividado. Há poucos dias, começou a procurar um comprador para sua filha de quatro anos.
Provação sem fim
A prática é uma provação sem fim para as mães: a decisão de vender sua filha, a espera até a sua partida — que muitas vezes duram anos — e então a separação.
Rabia, uma viúva de 43 anos também desalojada pela seca, está fazendo o possível para adiar o terrível prazo. Sua filha Habibeh, de 12 anos, foi vendida por US$ 550 (menos de R$ 3,1 mil) e deveria ter partido há um mês, mas ela implorou à família de seu futuro marido que esperasse mais um ano.
“Eu quero ficar com minha mãe”, sussurra a adolescente, com olhos tristes.
Habibeh (à esquerda), que vive com sua mãe Rabia no campo de deslocados de Zaimat, deveria ter se juntado à família de seu futuro esposo há um mês. Foto tirada em 17 de outubro de 2021 em Qala- i-Naw, na província de Badghis, no Afeganistão — Foto: Hoshang Hashimi/AFP
Rabia diz que compraria sua filha de volta se tivesse algo para comer e beber. “Meu coração está partido”, afirma a mãe, “mas tinha que salvar meus filhos”.
Ela e seus três filhos mal têm do que viver no campo de deslocados de Zaimat. O filho de 11 anos trabalha em uma padaria por meio dólar por dia, e o de 9 anos coleta lixo por 30 centavos.
‘Não é uma norma imposta’
A idade mínima legal para as meninas se casarem era de 16 anos no governo anterior — antes de o Talibã voltar ao poder, em agosto. Agora, o grupo extremista tem restringido cada vez mais o direito que as mulheres conquistaram nas últimas duas décadas.
Malawi Abdul Sattar, governador em exercício da província de Badghis, afirma à France Presse que esses casamentos “não são uma norma imposta” pelo Talibã. “Se devem a problemas econômicos”.
Do G1.