*Por Estevam Dedalus
Na sociedade patriarcal, o afeto é visto como algo feminino. É comum os homens não receberem os estímulos educacionais adequados para desenvolvê-lo de maneira plena e muitas vezes serem censurados quando fazem demonstrações públicas desse sentimento. Tendem, por isso, a ser menos carinhosos e a relegar o cuidado às mulheres.
Segundo a teórica e feminista Bell Hooks, o patriarcado além de impor a subordinação feminina a um sistema de dominação e exploração, também criou uma prisão para os homens, reduzindo a sua capacidade de expressar emoções e de se revelar vulneráveis e empáticos.
O que é valorizado no mundo masculino são valores e sentimentos como a agressividade, a dureza, a coragem, levando assim a repressão de sentimentos e de experiências emocionais mais amplas e complexas. Eles são subjetivamente mortificados desde a infância, o que começa pela socialização primária e é reforçado ludicamente por brinquedos, brincadeiras e jogos, diferentes para meninas e meninos, como pelos papéis de gênero que ambos são ensinados a desempenhar. Com suas potencialidades emocionais comprimidas, os homens vivem o autoisolamento e a inabilidade em lidar com o que sentem. Por outro lado, alguns conseguem desenvolver – a duras penas – uma outra linguagem afetiva. Uma gramática de amor.
Outro dia me deparei com mais um bom filme da recente safra do cinema cearense. Estranho Caminho, do diretor Guto Parente, é uma história sobre afetos, acontecimentos inusitados e uma difícil relação entre pai e filho. A trama se passa em Fortaleza durante a pandemia de covid. O personagem principal David (Lucas Limeira) é um jovem cineasta, que vive em Portugal, mas que está de volta à sua cidade natal para participar de um Festival de Cinema.
David, como todo mundo no início de 2020, foi surpreendido por uma pandemia que levou a um confinamento social, antes de sua participação no Festival. Ele que estava hospedado em uma pousada, com algumas diárias pagas pela organização do evento, se viu preso em Fortaleza, com voo de volta para Portugal cancelado, sem dinheiro, amigos e família.
O único parente na cidade era o seu pai, Geraldo (Carlos Francisco), com quem tinha perdido contato há mais de dez anos e que então resolve procurar em sua casa: um apartamento minúsculo. Velho e bagunçado. Cheio de livros e com aspecto de sujeira. O pai, naturalmente, se mostra surpreso com a chegada do filho; mas não é em nada acolhedor. David fala sobre a dificuldade que vem enfrentando, como não tem mais lugar pra ficar enquanto o seu voo não é remarcado. Ouve do pai que não há condições de abrigá-lo, no momento, mas que anote o seu número de telefone num pedaço de papel para que possa entrar em contato caso as coisas mudem. Aquilo é visto por David como expressão de uma falta de amor, que se sente humilhado e vai embora.
Um tempo depois, recebe de madrugada um telefonema. É Geraldo dizendo que pode passar alguns dias em sua casa. A ida de David para a residência do pai revelará um estranho caminho que os empurram por uma estrada tortuosa em busca de afeto. Geraldo é retratado pela narrativa como alguém cheio de manias, que passa o dia escrevendo algo num computador, que não gosta de ser interrompido e que detesta barulho. Sobretudo, como um homem que não sabe se comunicar de maneira não agressiva com seu filho. Os diálogos são quase sempre tensos e ruidosos, devido mais ao pai do que ao filho, passando a sensação de que podem escalar a qualquer momento. O que deixa a convivência estressante, criando uma sensação de angústia nos espectadores do filme.
David tem que “pisar em ovos” ao caminhar sobre um desconhecido campo minado, de uma relação que nunca se constituiu de fato. A não ser no mundo de sua imaginação ou nas falas de sua mãe sobre a possibilidade dele se reaproximar do pai. O que vemos são escombros. Vestígios arqueológicos de um passado. Eles, no entanto, vão tentando coser, cada um a seu modo, novos laços. Um fosso geracional os separa. David é um jovem com vinte e poucos anos que é “capaz de ir, e que vai muito mais além do que imaginamos”. Geraldo, por sua vez, um homem de 69 anos que foi embrutecido pela vida, com muita dificuldades de expressar os seus verdadeiros sentimentos. Mas que por alguns instantes furtivos, deixa escapar um pouco de afeto e carinho. O que pode ser interpretado como um mísero sentimento afetuoso, uma migalha, é visto por David como algo muito importante. Talvez por sua carência afetiva ou pela situação de desamparo em que se encontra ou mesmo por entender que aquela era a única linguagem de amor que seu pai conhecia.
Ao longo da história, David descobrirá que o pai publicou um livro com orientações sobre como ter uma vida e uma família feliz. Com um capítulo em que ensina as pessoas a lidarem com os filhos de maneira amável e a manter saudável o casamento. Uma contradição flagrante com a sua prática. O jovem ainda vai enfrentar a experiência de ter o pai contaminado pelo coronavírus, o medo da perda e da morte, sempre mesquinha e cruel. O estranho caminho que une essas personagem nos conecta a um destino apontado por Clarice Lispector: “Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.”
*Doutor em Ciências Sociais e professor da Universidade Estadual da Paraíba