Emprestar a parente leva 7 milhões de brasileiros para o SPC

Não bastava ser primo. Era também amigo de infância. Aí chegou com jeitinho e conseguiu convencer o contador João Moraes a tirar uma moto para ele no cartão de crédito. “Não deu certo. Pagava um mês sim, um mês não e, no final, se pagou a metade foi muito”, lembra. Mas não se admire, caso tenha passado pelo mesmo drama.

Dois em cada dez consumidores inadimplentes no Brasil estão nesta situação por emprestar o nome. E em 68,3% dos casos quem pediu o cartão de crédito emprestado, o financiamento de um bem ou aquela folha de cheque que bateu sem fundo foi alguém da família, de acordo com uma pesquisa feita pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL). O problema atinge aproximadamente sete milhões de consumidores.

No caso de João não deu para segurar a prestação de R$ 300, o que o levou a cair nos juros do rotativo do cartão de crédito. “Levei seis meses para conseguir resolver esse problema, porque não conseguia pagar a fatura toda do cartão. Tive que fazer muita hora extra no trabalho e juntar com o décimo terceiro. A amizade ficou, mas o crédito acabou”, diz o contador. Para ele, em se tratando de família, o mais complicado é dizer não. “Ele se enrolou e eu fiquei enrolado junto. Fiz de olhos fechados, porque era meu melhor amigo. Só que, depois desse baque, tive que avaliar o risco”.

Mais da metade dos entrevistados (51%) afirmou que o principal motivo para emprestar o nome foi a tentativa de ajudar.

Foi o que aconteceu com a aposentada Valdelice Aragão, de 81 anos. Após ver um dos 10 filhos ficar desempregado, não hesitou em financiar um carro para que ele pudesse trabalhar como Uber. “Sempre tem um que está precisando de ajuda. A gente não pode deixar passar necessidade. Usei os R$ 20 mil que tinha na poupança e financiei o restante. Até agora ele vem pagando direitinho, mas sei que se ele não cumprir tenho que assumir”.

A aposentada estava junto com outro filho em uma financeira para contratar um novo empréstimo. “Agora vou ajudar o neto a comprar outro carro para trabalhar também como Uber . É um dinheiro que ele já consegue pagar a faculdade. A gente faz o sacrifício”, acrescenta. Apesar de assumir que fica “no pé”, para que os familiares honrem as prestações, já houve situações em que a boa vontade levou a aposentada ao SPC. “Foi por causa de um cartão de crédito, mas aí eu consegui resolver e meus próprios filhos me ajudaram a pagar”, lembra Valdelice.

Calote

Considerando os inadimplentes que emprestaram o nome e pagaram ao menos parte da dívida, 56% deles tiveram que fazer algo para conseguir limpar o nome, principalmente economizar e cortar alguns gastos (36%) e usar parte da reserva financeira (11%), sendo que a média da dívida corresponde a R$ 1.215.

E a falta de dinheiro é a principal justificativa de quem pega o empréstimo e não paga em 33% dos casos. Em 19% das situações, a pessoa desapareceu e não teve como ser cobrada. A relação pessoal é outro agravante: em 69% dos casos, as relações ficam abaladas. Mesmo com os transtornos causados com o empréstimo de nomes para terceiros, 24% dos entrevistados voltaram a emprestar em outra oportunidade, principalmente para evitar mágoas (11%).

A secretária Vanda Machado caiu na cilada pelo menos umas três vezes. Em uma delas, deu um cheque em branco para que uma amiga fizesse um empréstimo. “Quando liguei para ela para cobrar, a irmã me disse que ela tinha viajado para o Caribe. A sorte foi que deu tempo de sustar no banco. Mas até o agiota que ela passou o cheque me ligou”.

Outra circunstância envolveu uma colga de trabalho. “A filha dela ficou grávida. Aí fiquei comovida e fiz o crediário. Mas, além do berço, ela ainda comprou cama e fogão. Dividiu em umas 18 vezes e só pagou a primeira e a segunda parcela. Quando vi, meu nome estava era no SPC, aí perdi outra amiga”.

Por último, Vanda financiou um carro para o irmão, com prestações de R$ 400 em 48 meses. “Ele conseguiu pagar umas 30 parcelas antes de começar a atrasar. Depois não teve jeito. Eu e minha irmã tivemos que arcar com o resto. Tiramos o dinheiro que a gente tinha numa poupança para ir para as Olimpíadas”, relata.

O veículo tinha ainda três anos de IPVA em atraso e mais 10 multas no nome de Vanda. “Tive que exigir que ele resolvesse e então ele vendeu o carro para pagar. Depois disso, eu só empresto dinheiro para minhas irmãs, porque sei que elas pagam. Homem tem cara lisa, não paga. Não tem argumento mais. Não empresto nem para o meu filho”, garante, pelo menos, até que o coração “amoleça” novamente. “Normalmente quando alguém da família pede é porque está precisando muito. Eu acho ruim não dar a mão sabendo que o seu nome está tranquilo”, completa ela.

Saída

Para o educador financeiro do SPC e do Portal Meu Bolso Feliz é preciso ter cautela na hora de emprestar e lembrar que, como diz o ditado, “dinheiro emprestado é dinheiro dado”. “Busque ajudar de outras formas, mas se decidir mesmo emprestar faça as contas e tenha um plano B para que você possa cobrir sem cair no endividamento”.

No Juizado de Assistência Financeira ao Super Endividado, o problema é recorrente como aponta o coordenador e educador financeiro, Antônio Carvalho. “ Toda família sempre tem alguém que recorre a esses empréstimos. Antes de dizer sim, pondere se isso é realmente para atender uma necessidade emergencial e se a pessoa tem condições de honrar o compromisso”, aconselha Carvalho.

 

Do Correio da Bahia