Dinheiro falso (ou as especulações sobre teoria econômica retratadas no cinema)

“A grande aposta”, título do filme em português do filme concorrente ao Oscar diz pouco, mas The big short, o título original, diz tudo, remete ao nome de uma operação facínora e de alto risco, rotineira no mercado financeiro globalizado.

Trata-se do seguinte. Baseados na percepção – correta – de que o mercado vive um momento irracional de escalada de especulação desenfreada em torno da cotação de um ativo (no caso da crise de 2008, as hipotecas imobiliárias do mercado americano, da mesma maneira que no século XVI foram as tulipas do mercado holandês), um grupo de corretores, no filme um sem relação com outro, resolvem bancar uma aposta na contracorrente.

Ou seja, os espertos consignam nas contas dos investidores das respectivas corretoras que administram a compra dos títulos imobiliários na alta, mas não são bobos de comprá-las. A conta do pobre investidor individual não passa de uma escritura sem ativo, um papel a descoberto. A compra dos títulos imobiliários, adiada, só vai ocorrer a preço vil na bacia das almas, quando do estouro da bolha especulativa – ah, os contos da carochinha de mau gosto altissonante de “regulação” e “fiscalização” do mercado! A diferença em dinheiro entre vender na alta e comprar na baixa fará milionários os personagens da trama – o narrador cínico (Ryan Gosling) o ex-médico introvertido (Christian Bale), o crítico do sistema (Steve Carell) e o desiludido alternativo new age (Brad Pitt) -, até abandonar o stress do mercado e passar a frequentar o paraíso utópico de uma espécie de Pasárgada sem rei.

Em teoria econômica, desde os fisiocratas (século XVII) que o sonho do mercado é se tornar natureza, no caso uma “segunda natureza” baseada em dinheiro e contratos formais que geram, por mágica, mais dinheiro e contratos. Em teoria da história, no começo dos homens, acontecimento social e natureza compunham um ciclo destinado a se repetir. Exatamente por isso a estrutura do herói na tragédia grega tradicional era de destino predeterminado pelos deuses. Por mais que o herói enfrente a força do destino, a glória é vã.

Deixo um pouco de lado a saga geral do filme e, à maneira do método naturalista de Curvier, que procurava explicar a estrutura do corpo a partir de um osso, foco em um dos personagens. Tenho lido mais críticas remetendo ao ex-médico nerd, “Michael Burry”, talvez pelo fato de o narrador da história, o cínico “Jared Vennett”, ter a ele atribuído a primazia em detectar o estouro da bolha. Prefiro “Mark Baum”, o corretor inconformado crítico da desumanidade dos mercados, brilhantemente interpretado por Steve Carell.

Mark aparece, menino e judeu, em um dos primeiros flashbacks do filme através da crítica do rabino à mãe – “o menino é excelente aluno nas aulas do Torah (o livro sagrado dos judeus), mas descobri que ele estuda com o objetivo de contestar a escritura dos deuses”. Daí em diante, cumprindo o trauma da reprimenda da autoridade do Rabino diante da Mãe, Mark vai seguir um papel drumonniano de ghauche no mundo, uma consciência crítica “no” sistema. O pequeno corretor é movido de coragem suficiente para desmascarar a conversa fiada otimista de um dos gurus das finanças num congresso profissional, um idiota que insistia em negar a premência do estouro da bolha; no entanto, na hora H, embora sofrendo dores de consciência, dispara a ordem da operação especulativa como outro qualquer corretor cínico. É como se Jarbas Passarinho tivesse lhe soprado nos ouvidos: – “às favas os escrúpulos de consciência, Mark Baum”. Mas, pensando bem, que poderia o solitário Mark fazer para impedir o destino da “segunda natureza”?

“A sutileza metafísica e as manhas teológicas” (Marx, O capital) do dinheiro frequentam as artes desde sempre. Posso recordar de memória as sutilezas metafísicas em torno de Shylock, o judeu rico e agiota, de “O mercador do Veneza” (Shakespeare) até, na chave da indústria cultural, o comerciante de ouro Goldfinger, sem dúvida o melhor filme de 007 (Goldfinger, 1964). São dois momentos da história do dinheiro.

No decorrer dos séculos, o judeu rico Shylock sofreu uma reavaliação da crítica (Harold Bloom chegou a declarar que Shakespeare não precisa ter se exposto tanto com essa peça), afinal, o poder de fato não residia no especulador, mas no poder político do Doge de Veneza e nas sagazes artimanhas discursivas de Pórcia. Já Golfinger, ao planejar o gesto louco de assaltar as reservas em ouro dos EUA, armazenadas em Fort Knox, revive uma alegoria dos tempos passados recentes do Pós Guerra até 1971 (fim do padrão ouro, por decisão unilateral de Nixon), em que o padrão ouro dava um lastro ao dólar. Tanto o Doge como o Agente Secreto representavam, bem ou mal, certo ou errado, o poder (de regulação) do Estado em relação à força da grana.

Já no caso dos protagonistas de “A grande aposta”, coadjuvantes do mercado, se afastam da ribalta e vão viver a dor e delícia da existência comum. No entanto, o motor perpétuo dos mercados desregulados e globalizados segue – a última informação na tela do cinema informa que em 2015 um novo título financeiro – um CDS (Credit Default Swaps) desses qualquer – está quente do mercado, Quo vadis? Se em 2008 estourou a bolha imobiliária, em 2016 pode ser a bolha chinesa… ou brasileira…