Desembargadora suspende reintegração de posse em antigo hotel de área nobre

No domingo (8), uma feijoada marcou a comemoração das famílias da Comunidade Vitória pela suspensão de uma liminar que determinava a reintegração de posse do terreno onde construíram suas casas. A suspensão foi concedida na quinta-feira, 5 de setembro, pela desembargadora da Justiça Estadual, Maria de Fátima Bezerra Cavalcanti, em ação de reintegração de posse movida pelo Hotel Cabo Branco S/A.

O antigo hotel, situado no Altiplano, bairro nobre da capital paraibana, nunca chegou a ser concluído e foi abandonado. A obra inacabada foi erguida com recursos de financiamento concedido pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), oriundos do Fundo de Investimentos do Nordeste (Finor). Hoje, as ruínas estão cercadas por casas de alvenaria onde residem 179 famílias que chegaram ao local no início de 2010.

O prédio abandonado se tornou “símbolo da impunidade e do desperdício de recursos públicos”, afirmou o Ministério Público Federal (MPF), em 2009, em recurso de apelação, quando recorreu de sentença de primeiro grau que julgou parcialmente procedente denúncia contra os proprietários do hotel pelo desvio equivalente a mais de 7 milhões de dólares de recursos federais não aplicados na obra. O processo penal acabou arquivado com extinção da punibilidade dos réus.

A comunidade começou a se formar no início de 2010 quando famílias ocuparam a obra abandonada do antigo hotel e, posteriormente, construíram moradias no terreno ao redor. É o caso de Kelly de Assis Nóbrega, 34 anos, mãe de duas crianças. Kelly conta que era desempregada quando fixou moradia na área do hotel abandonado. “Morei três anos num barraco de zinco, sozinha com duas crianças. Minha filha tinha um ano e meu caçula poucos meses de vida. Eu via a hora os dois morrerem eletrocutados”, conta a moradora.

Ela relata que dormia no chão do barraco com os filhos e conseguiu construir a casa com doações. Durante todo esse tempo, Kelly Nóbrega sobreviveu fazendo faxinas e com o Bolsa Família. Ela conta que, há sete meses, conseguiu um emprego de berçarista, onde ganha um salário mínimo. “Não é carteira assinada, mas é de onde eu tiro a sobrevivência dos meus filhos”, afirma a moradora.

Outro morador da Comunidade Vitória é o operador de retroescavadeira Edvaldo José da Silva, 36 anos. Todas as manhãs, quando sai de casa para trabalhar, Edvaldo Silva admira a megaestrutura da escola privada que ajudou a levantar, localizada no outro lado da rua. O operador conta que trabalhou na obra da escola desde o início. “[O local] Era só mato. Eu trabalhei desmatando a área para começar o canteiro de obras. Conheço todas as lajes da escola, do começo ao fim. Eu que cavei todos os pilares com a retro”, conta Edvaldo. No decorrer da construção, transportou peças, ferros, andaimes, a grua da obra e, segundo ele, só saiu no final, quando a escola foi inaugurada.

Antes de construir a própria casa ao lado da antiga obra abandonada do hotel, o operador de retroescavadeira morava de aluguel. “Eu pagava R$ 500,00 de aluguel no [bairro] Padre Zé e aqui não pago mais, desde que vim pra cá. Hoje, com esse dinheiro, compro comida para os meus filhos, vou à praia”, relata. Assim como o operador, há muitas pessoas na comunidade que são empregadas, mas também há muitas sem emprego. “Porque está ruim de emprego. Está muito ruim. Tem gente aqui que chega muitas vezes até a passar necessidade, aí, um ajuda o outro. A comunidade aqui é unida”, conta Edvaldo.

Um bom direito

Em 2015, os proprietários da área em que estão as ruínas da obra abandonada do Hotel Cabo Branco entraram na Justiça Estadual com uma ação, pedindo reintegração de posse e obtiveram liminar favorável. Agora, em agosto de 2019, um oficial de Justiça foi até a comunidade com um mandado de reintegração de posse, o que levou as famílias ao desespero, em razão do iminente despejo. Angustiada, uma das moradoras da comunidade procurou um ex-patrão, formado em Direito, para quem tinha trabalhado como diarista e pediu ajuda. O ex-patrão, então, indicou um escritório de advocacia formado por jovens advogados que imediatamente assumiram a causa, entraram com um recurso perante o Tribunal de Justiça da Paraíba e conseguiram a suspensão da liminar. “Nós ficamos bastante preocupados porque não queríamos ver as famílias desalojadas de suas casas. Diante de vários equívocos encontrados no processo, verificamos que era grande a possibilidade da decisão ser revogada e entramos com um agravo de instrumento”, relata o advogado André Felipe Ferreira Oliveira, que assumiu o caso com o advogado Yanko Cabral Rodrigues de Amorim.

Famílias angustiadas

O advogado contou que as famílias estavam com os nervos à flor da pele por causa da visita do oficial de Justiça e que, por isso, os sócios do escritório de advocacia se organizaram para checar, de hora em hora, na internet, se já havia alguma decisão. “Estávamos monitorando o processo e vimos o despacho 20 minutos depois que foi proferido”, contou André Oliveira. Tão logo souberam da suspensão da liminar, os advogados ligaram para a comunidade e tranquilizaram as famílias. “Não pensamos duas vezes e já informamos a todos para que pudessem dormir mais tranquilos, sem o medo de a polícia invadir as casas. Inclusive, mandamos uma cópia da decisão para eles, por telefone, para que se alguém, por ventura, viesse a ameaçar a comunidade dizendo que eles precisavam sair, eles mostrassem a ordem judicial”, relatou.

Atuação conjunta

Na última semana de agosto de 2019, representantes de famílias moradoras da Comunidade Vitória procuraram o Ministério Público Federal após serem informadas que haveria a reintegração de posse do terreno onde moram. Na noite da terça-feira, 10 de setembro, o MPF visitou a ocupação e participou de reunião com cerca de 60 integrantes da comunidade.

“Como de praxe, nossas visitas às comunidades ocorrem, preferencialmente, no período noturno, horário em que as pessoas já voltaram dos seus empregos e podem participar”, explicou o procurador da República José Godoy Bezerra de Souza. Ele informou que o MPF vem acompanhando a situação dessas famílias desde 2017: “Até mesmo porque se trata de um terreno em iminência de passar a pertencer à União, já que existem diversas execuções federais em que o terreno é objeto de penhora”, lembrou o procurador. “Ademais, temos acompanhado o acesso a políticas públicas para essa comunidade, desde creche, posto de saúde e atendimento de energia elétrica e água pelas operadoras”, acrescentou Godoy.

O MPF também está atuando em casos semelhantes, através da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), em conjunto com as Defensorias Públicas da Paraíba e da União e órgãos do Executivo e, no caso da Comunidade Vitória, com os advogados da comunidade.

Hipervulnerabilidade

A defensora pública Lydiana Cavalcante também participou da visita noturna à comunidade e explicou que a Defensoria Pública Estadual atuará no caso como protetora dos interesses dos que se encontram em uma situação de hipervulnerabilidade. “Será uma atuação complementar dentro de nossa atribuição como órgão responsável por promover os direitos humanos de forma coletiva”, esclareceu.

Cadastro das famílias

No caso da Comunidade Vitória, a Secretaria Estadual de Direitos Humanos (SEDH), através da Diretoria do Sistema Único de Assistência Social (Suas), está fazendo o levantamento social das famílias ocupantes. Na semana passada, a SEDH iniciou o cadastramento das famílias que residem no local. Conforme a secretaria, a partir desses dados, será elaborado um relatório social, expondo a atual configuração da comunidade, que será incluído no processo judicial. Até o momento, já foram cadastradas cerca de 140 famílias.

Enquanto a situação jurídica da comunidade não se resolve definitivamente, Edvaldo Silva, o operador de retroescavadeira, apela para a fé. “O que eu espero para o futuro é ficar aqui e deixar essa casinha para os meus dois filhos. A gente tem que ter fé naquele lá de cima. É o que mais eu peço a Deus”, afirmou.