Dependente químico revela que sonha aprender a ler e escrever

Seu Severino não quer e nem precisa de codinome ilustrado na matéria. Aceita ser Severino e assume os pesos que sua vida severa possui. Iniciou sua vida de vícios ainda muito jovem, com 10 anos. “Usei tíner, cola, depois fui para a maconha. O crack na época ainda não tinha chegado na Paraíba, mas logo chegou aqui e destruiu tudo. Eu vi que as pessoas que me ajudavam eram as que eu mais maltratava por trás. Hoje sou feliz porque não uso drogas, meu problema é o álcool, que é outra doença”, lamenta o morador de rua.

Severino tem 47 anos e é um dos seis acolhidos, atualmente, no Centro de Apoio Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD III) de João Pessoa. Os acolhidos, em sua maioria, são homens a partir dos 19 anos, situados em um certo grau de vulnerabilidade social. Os tipos de drogas mais comuns são o crack e o álcool.

Por mês, são recebidos, em média, 600 pessoas que participam das atividades da instituição. De 2014 para 2015, o aumento foi de 178 novos dependentes, contabilizando 218 no total em tratamento, representando 445% de crescimento da demanda. Os usuários são barrados no acolhimento se estiverem sob algum efeito de entorpecentes. Normas da casa, cumpridas, em grande parte, pelos beneficiados. O tratamento concedido é dado de forma mais humanizada.

De acordo com Ricardo Guedes, psicólogo do Caps AD III, a demanda dos usuários é espontânea. No entanto, existem também casos de alguns que são encaminhados por outras instituições. O Centro não realiza internações, existem dependentes que são acolhidos por um período máximo de 14 dias por lei em “leitos de desintoxicação”.

“Quem determina se ele fica os 14 dias é uma equipe de plantão que avalia esse usuário todos os dias. Então ele pode ficar dois, três, quatro dias, vai depender da avaliação da equipe multiprofissional, que são psicólogos, enfermeiros, médicos, nutricionistas”, explica Ricardo.

É lá no Caps AD III onde Seu Severino sente o amor que diz lhe faltar na rua. É através do carinho e da atenção dos profissionais do Centro que seu Severino se sente seguro do mundo de violências que tanto frisa durante a conversa. “Aqui é uma casa que nos apoia, acho que nem na casa da gente somos tratados assim, e eu sou um morador de rua. Minha esperança é só essa casa. Quando cheguei aqui nem registro eu tinha, hoje tenho todos os documentos, graças a diretora e aos outros profissionais”, afirma.

“Nosso tratamento não é focado no remédio, ele é focado no processo terapêutico, que a gente chama de projeto terapêutico; é traçado na triagem. Logo que eles chegam, onde a gente vê o perfil de cada usuário, aí é traçado o projeto, que pode ser intensivo, não intensivo ou semi intensivo”, conta o psicólogo.

Os usuários são submetidos a diversos tipos de oficinas, terapia ocupacional, terapia em grupo, como trabalhos manuais relacionados ao artesanato, teatro, música e oficinas realizadas pelos técnicos, que são médicos, nutricionistas, enfermeiros. “Todos os dias, de segunda à domingo, tendo início às 8h, os usuários tem acesso a essas oficinas”, relata Ricardo.

‘Sem lenço, sem documento, num sol de quase dezembro’

As mãos de Seu Severino são castigadas por trabalhos realizados na tentativa de garantir sua sobrevivência. No entanto, seus calos de experiência e luta não são aceitos em todo lugar. Com o estigma de um dependente químico, o acolhido relata as dificuldades que enfrenta por ser um prisioneiro do vício. “Ninguém me queria pra trabalhar, porque tinham medo. Ninguém coloca um drogado pra trabalhar numa obra, porque senão ele vende as ferramentas todas pra comprar a droga. Mas tudo que aparecer eu faço, desde que não pegue em uma caneta”, revela Severino.

Seu Severino tem nome e sobrenome, mas se identifica com as impressões digitais gastas. É analfabeto e lamenta o fato de ter escolhido uma viagem errada: a viagem das drogas ao invés das letras. “Tenho inveja da pessoa que sabe ler e escrever, que eu não sei. A droga não me deixou estudar. Abandonei os estudos, mas já tava quase aprendendo a ler. Aprender a ler é meu sonho, porque eu tô cansado de botar meu dedo nesse livro aí. Todo mundo chega aí e assina, a gente chega fica com um remoído aqui dentro. Por que eu abandonei meu estudo?”, conta. Com marcas espalhadas pelo corpo, Severino explica a proveniência de cada uma delas. “Já levei cinco tiros. Isso é o presente que a droga traz”.

Perdas

Com um olhar distante, talvez em busca dos tempos de liberdade, Seu Severino relata o que perdeu indo de encontro ao caminho pedregoso das drogas. “Eu perdi tudo. Passei cinco anos na igreja e no AA, todo mundo me respeitava e a comunidade me recebia de braços abertos. Mas hoje em dia um prato de cumê (sic) ninguém dá não. Lá fora não. Mas convite pra droga é o que eu mais recebo. Essa semana eu ouvi um camarada dizer: por que você não troca o álcool pelo crack? Pelo menos no crack você anda ajeitadinho e no álcool você anda todo sujo”.

“O que é que a vida faz na vida de uma pessoa? Ela vem pra matar, roubar e destruir com a vida de uma pessoa, e dos outros e a da própria família. Mas se tem uma coisa que eu nunca fiz foi roubar nada de dentro de casa, só que quando eu vi que minha mãe tava sofrendo do coração por minha conta, eu tive que sair. No dia que minha mãe completou ano, eu disse: eu não tenho nem um sabonete pra dar pra senhora. Ela disse pra mim: o maior presente que você pode me fazer é abandonar as drogas”.

Severino não vê a família há tempos. Sua mãe e alguns de seus irmãos foram embora para o Ceará. Ele tem dois filhos, um biológico e uma de criação, mas afirma não ter contato também há muito. Alguns irmãos de Severino ainda residem na capital, no entanto, ele revela não querer muita aproximação. “Perdi um irmão na praia do Sol por causa de drogas. Alguns são usuários de crack, não quero ficar perto, se eu chegar lá dentro, eu vou fumar com eles. A gente tem que se olhar no espelho e lembrar do passado, porque se esquecer o passado vai voltar ao que era antes. Tem que se perguntar: Quem era eu nessa época?”

Seu Severino tem uma vida tão severina quanto a detalhada por João Cabral de Melo Neto em ‘Morte e Vida severina’: personagens iguais, mas vidas diferentes, porém, igualmente sofridas. No entanto, o personagem dependente químico prefere abolir a palavra morte do seu título. Seu Severino é vida, e é em suas dores e agruras que encontra forças para vencer suas próprias barreiras. Busca encorajamento através de uma frase constantemente dita por ele: nada muda se a gente não mudar. Seu Severino é só um dos milhões de Severinos que lutam diariamente para alcançar a cura de uma das maiores doenças do século: o vício.