Constantine

Você conhece, se ainda não, precisa conhecer, a saga do mago mais transgressivo que já frequentou o cotidiano do inferno. Com a cara do cantor Sting, uma ascendência de sacerdotes e cultores do Oculto que remonta à revolução francesa, o mago criado em 1985 por Allan Moore (Watchmen, V de Vingança) , Stephen Bissette e John Totleben desafia o demo em qualquer dobra do tempo ou espiral cósmica para além dos universos possíveis.

John Constantine é o nome da fera. Desenhado em 1985 apenas para compor a paisagem (des)humana do enclave metafísico em quadrinhos onde impera o Monstro do Pântano, ele nasceu em Liverpool.

Constantine viveu e perambulou com hippies, fundou uma banda de rock que não fez sucesso, invocou o demônio num ritual que não deu certo e em pouco tempo estava em sua própria revista, “Hellblazer”.

Sua trajetória é uma saga que pode ser lida como uma ode humanista insculpida na perversidade. O seu espaço é rememoração permanente dos círculos dantescos onde malícia, incontinência, bestialidade, heresia, violência empesteiam tudo. Ermos do desamor.

O seu tempo é pós-nietzschiano. Um tempo onde Deus se exilou, e por onde circulam boatos até de que Ele estaria morto. Coisa da pós-modernidade ou modernidade tardia, esse tempo que no dizer do também mago, o teórico da vida líquida, Zygmunt Bauman é marcado “pelo descrédito, escárnio ou justa desistência de muitas ambições (…) características da era moderna.”

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Capa de Infernal – vol. 6 – Chamas da perdição. Créditos: DC/Vertigo

Microciclo dessa saga está nas bancas, uma reedição de grandes histórias dos anos 1990, casos de arrepiar. “Infernal – volume 6 – Chamas da perdição” é clássico instantâneo vomitado pela imaginação febril de Garth Ennis, que fez do Juiz Dredd uma celebridade cinematográfica e catapultou a Vertigo a novo patamar de invenção produzindo histórias memoráveis para “Hellblazer”.

Contos interconectados que se passam no vasto labirinto psiconeural interdimensional onde perambulam espíritos atormentados.

Nessas sombras estão almas que blasfemaram e são fustigadas pelo

abrasar de labaredas infinitas. Lugar para anjos de asas partidas e humanos oprimidos pelo arrastar de correntes cármicas sobre o qual as malhas do mal são lançadas na captura de almas.

Almas que se prestam a negociatas no mercado do infinito em busca de poder, de dinheiro, de conhecimento…

Ecoam no ecossistema poluído pelas forças magnéticas do mal em que Constantine joga com o destino, e é por ele jogado, muitas das energias que fixaram o mito do Fausto enquanto emblema dos desafios da modernidade ao cidadão do mundo.

Relembrando: “Fausto, um intelectual ávido por gozar prazeres mundanos e obter amplos conhecimentos, contrai um pacto com o demônio Mefistófeles: vende a sua alma em troca de fama, riqueza e conhecimento por um período de 24 anos. No entanto, ao ver esgotar o seu tempo terreno, Fausto entra em um conflito existencial: apesar de saber-se proscrito das relações divinas, ainda pensa em uma forma de se livrar do castigo que o espera. Porém, há um preço que o personagem tem que pagar pela celebração da vida terrena, e seu desfecho trágico é inevitável”.

O ciclo mítico do Fausto encontra em Goethe e em Fernando Pessoa ancoragem e vivificação à altura dos conflitos que ainda estamos vivendo entre balsas com migrantes que morrem de fome à deriva e padres que anunciam na missa a vontade de envenenar artistas.

Sua origem para a chamada grande literatura, onde ele se vincula definitivamente ao cânon europeu que se espalha civilização afora, está em “A história trágica do Doutor Fausto”, de Christopher Marlowe, livro publicado em 1592. Marlowe se inspira no Fausto histórico, Jorg Faust nascido em 1480 em Kittlingen, cidade alemã. É descrito como falastrão, bandido, vagabundo, meliante autodenominado astrólogo líder dos nigromantes do seu tempo.

Constantine é um mago fáustico que deu um drible no diabo. Sua personalidade projeta tipos emblemáticos da área.

Tanto o que Aleister Crowley representa, o terrífico ocultista inglês, também chamado A Grande Besta 666, a quem Fernando Pessoa ajudou a forjar um suicídio, quanto o que um anti-herói do tipo Spawn projeta estão no íntimo de Constantine que pratica a subversão do escárnio e pode ser confundido com a psicossomática do nosso tempo. Alguém de quem se deve escapar. Se for possível…