Cinema brasileiro: “Que horas ela volta?” tem narrativa simples, sóbria e muito emocional

Poucos filmes brasileiros me chamaram tanto a atenção quanto “Que Horas Ela Volta? ”. E poucos mexeram comigo da maneira especial como este mexeu. Saí do cinema tocado pela profundidade simples do filme da Anna Muylaert. Simples não porque simplório – muito pelo contrário! A singeleza vem da narrativa sóbria, límpida, sem grandes rompantes mas ao mesmo tempo muito emocional.

O filme transborda delicadeza e humanidade nos gestos, nas situações, nos planos e enquadramentos, no sequenciamento das cenas, no encadeamento do enredo. A diretora consegue encontrar o tom o exato para construir um drama familiar sem o menor resquício de histrionismo e com a verve melodramática bem dosada.

A produção gira em torno da história de Val (Regina Casé), uma empregada doméstica nordestina que vem para São Paulo trabalhar na casa de uma família paulistana de classe alta, que vive numa casa cheia de luxos e requintes. Deixa sua única filha, Jéssica (Camila Márdila), morando com a família no Nordeste e passa a viver cuidando de uma outra família – a dos patrões. Depois de anos longe ela reencontra a filha, que vem fazer vestibular na capital paulista. E é desse reencontro que se desencadeiam as situações que alicerçam o filme.

Jéssica subverte os códigos de conduta que a mãe se esforça em manter e vai pouco a pouco quebrando paradigmas, mostrando que as coisas não são como são e por isso devem ser mantidas. A jovem é recebida pelo patrão (Lourenço Mutarelli) de Val como alguém da família, fica no quarto de hóspedes, circula pela casa com desenvoltura, almoça na mesa principal, abre a geladeira. Val, enquanto isso, segue com sua postura de subserviência completa e observando perplexa o comportamento da filha.

Uma tensão é gerada pela patroa (Karine Teles) de Val e logo se percebe que a abertura à filha da empregada não é como se pensava. Os códigos sociais aparentemente rompidos se mostram intactos e a o confronto é inevitável. Inconformada, Jéssica questiona a mãe como ela suporta viver como uma “cidadã de segunda classe” ao que ela responde que a filha “se acha melhor que todo mundo”. A tréplica vem numa frase que carrega um simbolismo enorme: “Não me acho melhor que ninguém. Eu só não me acho pior! ”.

A Val de Regina Casé representa um arquétipo de empregada que está cada vez mais raro, em franca extinção. A doméstica que migra de uma região para outra, mora na casa dos patrões, deixa sua família longe para cuidar de outra família, se anula diante das necessidades, vontades e caprichos de seus patrões. Entretanto, está longe de ser alguém anódina ou amargurada. Val se resigna e dá seu afeto ao filho da patroa, o amor que não pudera dar a própria filha. Faz tudo com dedicação e afetividade autênticos, é persistente e pró-ativa.

Um filme sobre espaços e suas significações sociais. Passado a maior parte no interior de uma casa, ele explora as relações de poder e afeto inerentes na convivência rotineira através de situações aparemente simples, mas que carregam um oceano de significados.

O elenco é pequeno e centrado em poucas personagens. Karina Teles está segura e convincente como a patroa elegante que  disfarça o preconceito social com uma artificial polidez de gestos e cordialidade forçada, Lourenço Mutarelli dá o tom preciso ao pai mantenedor meio cético e indiferente, Michel Joelsas transmite a naturalidade e empatia do filho adolescente criado pela empregada e que tem com ela uma relação maternal, uma cumplicidade de mãe e filho.

Mas o destaque vai para Regina  Casé. Ela é a alma do filme. Não consigo imaginar outra atriz que fizesse essa personagem com tanta naturalidade e desenvoltura. Sua composição  da Val consegue ser leve, divertida, densa e comovente ao mesmo tempo. Ao lado da jovem Camila Márdila que é enérgica e autêntica, esplêndida em cena, transmitindo verdade e uma força descomunal, Regina nos presenteia com uma personagem de cores vivas  e reais, carregada de muita emoção.

“Que Horas Ela Volta?” É, em essência, um filme sobre mãe e filha, sobre reencontro e sobre perceber-se, olhar pra si e se enxergar. Se em Central do Brasil, de Walter Sales, temos o encontro do Brasil consigo mesmo, no filme de Anna Muylaert há o reencontro desse Brasil, através da Val de Regina, eo embate com o novo Brasil, representado pela Jéssica de Camila.

A simbologia desse encontro, a  emoção derramada que ele provoca,    junto de uma narrativa primorosamente construída, são fatores que transformam o filme num dos mais singulares da filmografia brasileira e uma pérola no circuito mundial de cinema. Uma obra que promote conquistar as plateias e adentrar espaços nunca antes alcançados, “entrar na piscina”. Estou na torcida!