Cientistas acordam cérebro morto e questionam noção de vida

O cérebro do mamífero é muito sensível à queda de níveis de oxigênio, o que pode ocorrer rapidamente após pequenos períodos de interrupção do fluxo sanguíneo. Quando há depleção desse elemento e dos estoques de energia, a consequência é a destruição neuronal e danos irreparáveis. Agora, pesquisadores dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos relatam o desenvolvimento de um sistema de suporte de alta tecnologia que evita a rápida decomposição do órgão horas após a morte, o que permitiu reavivar a atividade de alguns tipos de células cerebrais. 

O estudo, publicado na revista Nature, foi realizado em cérebros de porcos. Mas os cientistas explicam que, embora tenham obtido alguma preservação do fluxo sanguíneo e do uso de energia pelas células, não foi detectada atividade funcional nos circuitos dos órgãos. O objetivo da pesquisa não foi fazer os animais voltarem à vida, mas preservar o cérebro para estudos. Porém, especialistas em bioética admitem que a iniciativa não está livre de polêmicas. 

“À medida que a ciência da ressuscitação de cérebros progride, alguns esforços para salvar ou recuperar os cérebros das pessoas podem parecer cada vez mais razoáveis — e algumas decisões de abrir mão de tais tentativas a favor da aquisição de órgãos para transplante podem parecer menos razoáveis”, observaram, em um comentário ao estudo, pesquisadores da Universidade da Reserva de Case Western (leia mais abaixo). 

Ao mesmo tempo, um artigo sobre a pesquisa, também publicada na Nature, levanta questionamentos éticos sobre experimentos com animais. Nita Farahany, presidente da Sociedade Neuroética Internacional, e colegas que assinam o texto pedem novas diretrizes para ajudar os cientistas a lidar com os dilemas explicitados pela pesquisa, que, segundo eles, “coloca em dúvida pressupostos de longa data sobre o que faz um animal – ou um humano – vivo”.

Preservação 

A capacidade de se estudar as dinâmicas funcionais de um cérebro post mortem são dificultadas pela rápida morte celular, o bloqueio de pequenos vasos sanguíneos e outros processos tóxicos que degradam os tecidos em decorrência da perda de fluxo de sangue e oxigênio no órgão. Métodos de congelamento e preservação permitem apenas análises estáticas microscópicas, bioquímicas ou estruturais. Para superar essas limitações, o neurocientista Nenad Sestan, da Universidade de Yale, liderou um projeto que resultou no sistema BrainEx (CérebroEx, em referência a “ex vivo”), especialmente desenhado para atenuar alguns dos processos responsáveis pela destruição de cérebros após a morte. 

Os cientistas usaram cérebros de porcos provenientes de uma fábrica de processamento de carne — eles destacam que, se não fossem utilizados no estudo, os órgãos seriam descartados. O BrainEx consiste em bombear uma solução chamada perfusato Bex — mistura de agentes de proteção, estabilização e contraste, que atuam como substitutos do sangue — nas artérias principais do cérebro, mantido à temperatura natural do corpo (37ºC). 

Os cérebros processados com Bex mostraram redução na morte celular, preservação das arquiteturas anatômica e celular; restauraram a estrutura dos vasos sanguíneos e circulares, e recuperaram respostas inflamatórias da glia (células que nutrem os neurônios), atividade neural espontânea durante as sinapses e o metabolismo cerebral ativo. Já os cérebros bombeados com uma solução controle, para fins de comparação, foram decompostos rapidamente. Não houve atividade elétrica que indicasse funções mais sofisticadas, como percepção ou atenção.

Intervenções 

Segundo os autores, o resultado sugere que levar agentes protetivos ao cérebro por meio da densa rede de vasos sanguíneos poderá melhorar as taxas de sobrevivência e reduzir os deficits neurológicos após traumatismos. “A pesquisa poderá estimular o desenvolvimento de intervenções que promovam a recuperação do cérebro depois da perda de fluxo sanguíneo, como durante um ataque cardíaco”, destacou, em nota, Andrea Beckel-Mitchener, líder da equipe da Inciativa Cérebro do Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA, que cofinanciou o estudo. 

“As formulações protetoras de células do BraiEx podem, algum dia, ser aplicadas em terapias para distúrbios como derrames. A capacidade isolada do cérebro de grandes mamíferos de restaurar atividades microcirculatórias, moleculares e celulares tem sido subvalorizada”, comentou Nenad Sestan em uma teleconferência de imprensa. Entre outras futuras aplicações, os pesquisadores sugerem que o BrainEx pode ser usado para testar como drogas experimentais afetam o intrincado circuito elétrico de um grande cérebro e os efeitos de traumatismos em células e conexões neurais, usando órgãos post mortem. 

Preocupação com o bem-estar animal 

Ainda que os cientistas envolvidos no projeto ressaltem que, clinicamente, os cérebros não estivessem vivos, apenas com atividade celular, o trabalho levantou preocupação de especialistas em neuroética. Nita Farahany teme que, ao ser replicado em outras partes do mundo que não tenham leis estritas de bem-estar de animais envolvidos em pesquisas, o experimento possa ocasionar dor e/ou desconforto às cobaias. Ela ressalta que, embora o encefalograma não tenha detectado sinais de atividade das células, isso pode ser resultado dos muitos produtos químicos inibidores que compõem a solução irrigadora dos cérebros. “Se esses bloqueadores tivessem sido removidos em algum ponto, talvez a equipe teria detectado atividade”, escreveu a ex-presidente da Sociedade Internacional de Neuroética e professora de filosofia da Universidade de Duke. 

Já Stuart Youngner, professor de bioética e psiquiatria, e Insoo Hyun, professor de bioética e filosofia da Universidade da Reserva de Case Western, em Cleveland, afirmaram, em um artigo da Nature, que o experimento faz questionar o que é morte. “Há décadas, bioeticistas e pesquisadores sobre políticas de transplantes têm lutado com a questão sobre quando devem parar de tentar salvar a vida de alguém para começar a salvar seus órgãos para beneficiar outra pessoa.” Eles lembram que há poucos dados científicos para dar suporte a essa decisão. “Clínicos discordam quando há uma chance de recuperação. E também há pouco consenso sobre qual nível de recuperação é ‘bom o suficiente’ da perspectiva do paciente e de suas famílias.” 

No estudo com os porcos, os cientistas afirmam que jamais houve tentativas de recuperar a atividade funcional cerebral ou de “ressuscitar” os animais. “A restauração da consciência nunca foi o objetivo dessa pesquisa”, garante Stephen Latham, diretor do Centro Interdisciplinar de Bioética de Yale, que participou de uma teleconferência de imprensa sobre o experimento. “Os pesquisadores estavam preparados para intervir com o uso de anestesia e de redução de temperatura para parar qualquer atividade elétrica global organizada caso ela emergisse.” Informações do Correio Braziliense.