O show Caravanas de Chico Buarque a que o público de João Pessoa assistiu essa semana é pura emoção no sentido clássico de movimentos emotivos internos, de abalo afetivo de múltiplas intensidades.

Emoção do público frente à voz, perante o ato artístico performático, curtindo a presença de Chico Buarque e todas aquelas lindas canções-retratos de uma geração, as canções-surpresas não ouvidas com o teor aurífero da mina de onde brotou “Carolina” …

Chico é o xamã que nos conduz por passagem de imagens sonoras e paisagens com seres que se alimentam de luz, pedaços de sonhos extraviados na atmosfera do teatro Pedra do Reino, guerrilheiros fetiches pauzudos no front incendiário da cidade pós-moderna, levadas de samba e batucada, anelos de bossa nova, favos de funk e raspas de rap, rock, soul e blues a cada esquina do show, heroínas transtornadas, o ácido do cotidiano… Tantas emoções…

O show começa, Chico aparece – buarque-se!, diz o momento – e acontece a excitação atômica física, mental e espiritual. É quando certo átomo poético de uma melodia absorve o fóton metafórico de uma letra e então há o salto quântico que nos leva com o artista ao nível superior do ideal de beleza que acontece ali na nossa frente. Momentos para sempre, que não se repetirão.

O design do espetáculo é marcado por iluminação orgânica, no sentido de vivacidade da autonomia da luz em constante atividade programática, spots e feixes que interagem com batuques e enunciados, e por elementos cenográficos geométricos que remetem a instrumentos que permitem à caravana cumprir sua viagem, elementos harmonizados com o sinuoso de cordas que simulam ora a paisagem, ora a tenda aberta do caravaneiro.

O roteiro e o desenho da luz do show Caravanas –criação de Maneco Quinderé, o mago piauiense das ondas e partículas – narram fábula pós-moderna onde luz viva brilha e baila ao sabor de vários ritmos para esculpir estruturas construtivistas. É de uma beleza impressionante numa faixa de vibrações sonorizadas – entre ressonâncias que propõem a dança e oscilações que convidam ao repouso – que funciona para emocionar e transformar corações e mentes.

As formas da luz sugerem trilhas que fugiram de pentagramas arbitrários, pautas por onde transita boa parte da vida e do calor do show. Trilhas de emoções eletromagnéticas radiantes que dialogam com elementos cenográficos de plasticidade múltipla.

Os elementos do cenário assinado pelo cenógrafo Helio Eichbauer, que também cenarizou o novo show de Caetano Veloso com os filhos – Hélio morreu em julho -, móbile, cordas, hélices, esferas, aros – expressam a contenção do minimalismo. Economizam em volume para garantir ao olhar voos aleatórios num espaço de liberdade cultivada cuidadosamente.

Mas investem na leveza de uma arquitetura lacunar onde brilha a esfera armilar dos astrônomos e viajores de antigamente para acolher e acomodar os desdobramentos da dinâmica dos corpos em ação na geometria do palco para interações subjetivas e concretas com o público.

A interação desse elementos arquitetônicos do show Caravanas resulta numa instalação 3D multimídia, plataforma para o partido alto da canção simples – porque diz poesia que altera a pressão arterial e batimentos cardíacos – e complexa – devido às sofisticadas interações estruturais – voz-instrumentos-canção-arranjos-cenário-performance – de Chico Buarque, que se expande com a banda.

A beleza organizada do espetáculo, com a sua nítida atitude de um clássico, o foco geracional, a presença do público que há décadas exalta a relevância da obra e do artista, compõe a paisagem artística e cultural em que se destacam performances como as de Roberto Carlos.

É possível dizer sem agredir o bom senso que Chico Buarque está para a Bossa Nova assim como Roberto Carlos está para o rock brazuca que Nora Ney deflagrou ao gravar “Rock around the clock” em 1955.

E com vinculação estilística explícita, Roberto Carlos é fã de João Gilberto, persona-símbolo do gênero que internacionalizou uma geração de músicos e compositores brasileiros, Roberto que se fortaleceu como intérprete modelando o próprio desempenho vocal a partir da vocalização econômica, sintética do intérprete de status mitológico de “Desafinado.

É isso, Chico é o Roberto da Bossa Nova, Bossa que é um case da nossa modernidade tardia, instauração revolucionária de 1958 – o compacto com as músicas “Chega de saudade” e “Bim Bom”, de João Gilberto, foi gravado e lançado há 60 anos – que domina com sua robustez harmônico-poética, inovação conceitual e formal, minimalismo e acolhimento conceitual das tradições musicais brasileiras o show Caravanas.

O show tem um jeitão standard de ser que é puro Roberto, a disposição dos conteúdos do palco, a atitude cênica do cantor, o viés conservador da forma comercial na caixa teatral italiana, mas os arranjos contradizem a cena, o que a dialetiza positivamente.

Compassos de samba são esticados como se fossem os foles de uma sanfona, em outros momentos a compressão de procedimentos modais de influência nordestina é do nível de um documento PDF, o uso dos clichês, melhor dizendo, módulos paradigmáticos, do samba se submete aos típicos lances harmônicos da inovação bossanovista. Quem acompanha a cultura musical mais de perto sabe, por exemplo, que na Bossa Nova a categoria de acordes maiores com o acréscimo de sextas e nonas vai gerar clusters que produzem voicings (aquela sensação de uma textura diferente no timbre do conjunto harmônico) de grande beleza. Os arranjos são cheios dessas belezuras.

O show evolui através de uma sucessão ordenada de padrões dinâmicos e imagéticos do sensível musical, realiza a corporificação do poético representado pelos artistas e sua performance. Caravanas funciona também como fabulário, onde que encontramos canções dramáticas como “As vitrines”, “As caravanas”, “Retrato em branco e preto”; também é um relicário, em que estão à disposição do público joias do nível de “Massarandupió” e “Blues para Bia”; além de ser um bestiário no sentido de conter narrativas alegóricas de fundo moral como acontece nas canções “A volta do malandro”, “Homenagem ao malandro”, “Geni e o Zeppelin” e “A história de Lily Braun”. Chico Buarque, jeito de menino, artista da elegância e da afetividade, presenteia seu público com o melhor que a música e a poesia realizam.