Caetano Veloso comove ao expor o Brasil em filme com memórias do cárcere

Em determinada passagem do documentário Narciso em férias, Caetano Veloso não segura o riso ao ler documento do inquérito sobre a prisão do artista na manhã de 27 de dezembro de 1968.

O riso brota espontâneo quando Caetano se depara com o argumento de que, aos olhos dos agentes de repressão da ditadura do Brasil, ele era subversivo e desvirilizante. O adjetivo “desvirilizante” é a causa da risada que bem poderia ser de Irene, a irmã que inspirou o compositor ao criar a canção homônima de 1969.“Eu estou rindo, mas é sério…”, se apressa a esclarecer Caetano na sequência imediata do filme.

A cena do documentário Narciso em férias – disponível para os assinantes da plataforma Globoplay desde segunda-feira, 7 de setembro, dia em que foi exibido na 77ª edição do Festival de Veneza – exemplifica o poder de sedução do filme dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil.

Diante das câmeras, está um artista que comove ao refletir sobre o Brasil tristemente risível da era do AI-5. Tristeza gerada pela consciência do qual grotesco e desumano era – é? – o país na mão de ditadores. Tanto que Caetano não segura o choro ao recordar o rasgo de humanidade do sargento baiano que quebrou o protocolo militar e deixou entrar na cela a então mulher do artista, Idelzuith Gadelha, a Dedé, para que o casal pudesse se ver e se tocar sem as grades.

O choro contido nos 54 dias de prisão também brota no filme quando Caetano revê as tais fotografias da Terra na revista Manchete – imagens que, dez anos depois, inspiraram a composição da canção Terra (1978).

Cartaz do documentário 'Narciso em férias', disponível na plataforma Globoplay — Foto: Divulgação

Cartaz do documentário ‘Narciso em férias’, disponível na plataforma Globoplay — Foto: Divulgação

Risos e lágrimas são momentos igualmente reveladores de filme que, a rigor, consiste em longo depoimento do artista sobre a prisão.

Ao relatar minuciosamente as memórias do cárcere, Caetano prende a atenção do espectador ao longo dos 83 minutos do filme porque tem o poder do verbo. E o utiliza com maestria no filme. Fosse o depoimento de alguém com menor habilidade para se expressar, Narciso em férias poderia ter resultado trivial e, sobretudo, entediante.

Como expõe um relato de Caetano, o documentário segue roteiro fluente porque o fluxo da memória do artista embute reflexões e emoções que provocam sensações no espectador.

O relato das torturas psicológicas e das andanças sob a mira das armas dos soldados geram a tensão de thriller, por exemplo, mesmo com o espectador ciente de que o final da história foi feliz, ainda que seja questionável atribuir “felicidade” ao desfecho de episódio que deixou marcas no artista, como sintetiza o próprio Caetano ao citar frase – “Quando se é preso, se é preso para sempre” – ouvida de Rogério Duarte (1939 – 2016), artista plástico associado à criação da Tropicália.

Com o título reproduzido de capítulo do livro de memórias Verdade tropical (1997) em que Caetano relatou as mesmas memórias do cárcere, Narciso em férias abre mão de imagens antigas e de depoimentos de outras pessoas para se nutrir somente do verbo de Caetano Veloso.

E esse verbo tem o poder de ecoar no filme sentimentos de 1968 / 1969 que contribuem em 2020 para que se fortaleça no Brasil a certeza óbvia – infelizmente questionada por alguns saudosistas do que jamais se deve ter saudade… – de que a liberdade é o único caminho possível para a ordem e o progresso dessa nação tropicalista pela própria natureza miscigenada.