Bossa Nova

O mundo do entretenimento global mais uma vez está de olhos abertos para a estetização do nosso jeito de ser. Estetização aqui enquanto movimento positivo, ato consciente no sentido de dimensionar artística e tecnicamente aspectos da sensibilidade de determinado processo psíquico e sociocultural, o nosso processo.

Refiro-me a circunstâncias socioafetivas, e antropopsíquicas – história, costumes, linguagens, símbolos, sotaques do ser material, mental, cultural, – típicas da gente e que, ao serem estetizadas, visam a estabelecer patamares de beleza, de empatia, de verdade estética para uma comunicação artística plena de valores com as contradições a eles inerentes. Algo além de café, samba e futebol para dizer mais e bem sobre quem somos.

A nova janela que se abre aos olhos do mundo a partir do Sul global, onde o Brasil reivindica o status de locomotiva continental, é a série “Coisa mais linda” que o canal pago de TV Netflix produziu e lançou para o seu público de assinantes em todos os Continentes.

Não há como ficar indiferente diante da história de uma jovem mulher paulista que busca no Rio de Janeiro dos anos 1960 a conquista de seus ideais de vida. Nesse processo, se forma um quarteto feminino que termina por instaurar o campo mais precioso da primeira temporada: o campo de combate da mulher para afirmar sua autonomia contra as repressões do machismo que se manifestam a cada segundo do cotidiano da época.

Cotidiano, no entanto, que dialoga do seu lugar histórico com o Brasil da atualidade em que os feminicídios se multiplicam, confirmação macabra da persistência das amarras contra as quais as mulheres precisam continuar lutando. Hoje, em circunstâncias melhores do que as de ontem.

Temas como aborto, machismo, homossexualidade, bissexualidade, racismo, preconceito de classe, hipocrisia, violência à mulher permeiam o cenário temporal de abertura da década. Um tempo, os anos 1960, de grandes embates contra as formas repressoras de sociabilidade. Embates que mergulharam nas grandes marchas libertárias que têm culminância nos movimentos contestatórios por direitos que explodiram no ano de 1968 em várias partes do mundo.

A antropóloga, líder política e feminista mexicana Marcela Lagarde fez, numa série de livros fundamentais para o fortalecimento do empoderamento feminino, a expansão do conceito de sororidade.

A palavra foi proposta em 1970 pela ativista estadunidense Kate Millett, voz da vanguarda feminista na América do Norte, para caracterizar o sentido de cumplicidade feminina na perspectiva de alavanca revolucionária.

É esse conceito que impulsiona a dialética da subjetividade (constituição do sujeito na perspectiva de processo aberto e inacabado da consciência voltada para as necessárias relações vivenciadas da objetividade) já referida na formulação do que temos como individualidade, personalidade, gênero, identidade, identidade de gênero, alteridade, e no que compreendemos como intimidade, privacidade, e autoconsciência na cristalização do eu.

Num recorte específico de gênero, e com relação à mulher, e principalmente à sororidade, “Coisa mais linda” investe na representação e análise dos limites do aprendizado dos sentidos da liberdade, liberdade do querer e do poder, do querer poder para avançar, do avançar para transgredir e evoluir e se ultrapassar as barreiras que cercam as cavernas do conformismo e da submissão.

Há que se destacar o apuro técnico do design da série, um painel híbrido da linguagem visual. Recursos de expressão, regras combinatórias dos conteúdos imagéticos, opções estilísticas da narração por imagem misturam TV, vídeo e cinema.

As inconsistências de roteiro dizem respeito a omissões históricas. No Brasil de 1959, da invenção da Bossa Nova, ritmo que é uma das personagens centrais, não falar das vedetes nem de JK, apesar de Brasília ser mencionada, é limitar a mensagem sobre o Rio de Janeiro histórico. Os personagens, com pouquíssimas exceções, não têm marcas singulares, de individualidade, são rasos, sem grandes inquietações que não sejam as episódicas. Instabilidades, no entanto, que não comprometem o trabalho eficiente de criação e direção do brasileiro Giuliano Cedroni e da estadunidense Heather Roth. Um trabalho cheio de bossa. De bossa nova.

Reproduzido do jornal A União, edição de 12/04/2019